Mimmo Epifani, é um conhecido bandolinista de San Vito dei Normanni, cidade da província de Brindisi, em Puglia (Itália). Colaborou com artistas de renome a nível internacional como Massimo Ranieri, Eugenio Bennato, com quem fundou o movimento Taranta Power, Antonio Infantino, Caterina Bueno, Matteo Salvatore, Ambrogino Sparagna, Avion Travel, Peppe Servillo, Danilo Rea, Rita Marcotulli, Fabrizio Bosso, Roberto Gatto, Furio Di Castri, Javier Girotto, Fausto Mesolella, entre outros. Participa também nas atividades do Circolo Mandolinistico de San Vito dei Normanni. Trata-se de um artista de referência para a cultura local e o desenvolvimento de géneros expressivos do Salento, como a pizzica e a tarantela.
Em resposta à situação de atual emergência devida à pandemia do COVID-19 e à necessidade de promover iniciativas que possam avaliar e atenuar o impacto no âmbito das artes performativas, investigar os efeitos da crise, com enfoque no sector da música, documentar as estratégias aplicadas pelos artistas nas suas atividades criativas e de performance, o Projeto Ágora convida Mimmo Epifani, para compreender os efeitos provocados pela crise sanitária, quer no nível individual, quer no âmbito do sector cultural em Portugal.
Francesco: Bom dia Mimmo Epifani! Obrigado por aceitar o convite e pela disponibilidade. Estamos aqui em Salento e obrigado por conceder esta entrevista.
Podes te apresentar,? Quem és, Mimmo Epifani ?
Mimmo Epifani: Obrigado a ti Francesco! Grande músico e amigo da Calábria, Milão e Portugal! São três: calabresa, milanesa e portuguesa!
Francesco: … e pernambucano, obrigado!
Mimmo Epifani: Grande! A apresentação… Eu sou um músico que toca bandolim um pouco ao redor do mundo, comecei aqui na zona rural de Alto Salento, San Vito dei Normanni, na província de Brindisi. Havia uma senhora aqui que tocava tambor nas “tarantate”, Belvedere… o nome era Belvedere! Depois veio o Mestre Mino Parmisano, Giovanni Parmisano Nardelli, Parmisano era o apelido… com ele comecei a aprender a arte do bandolim! Ele era um artesão, porque tocava tarantate, tocava pizziche e também construía instrumentos. Obviamente, ele era agricultor e fazia tudo sozinho! Aprendi a arte da música assim: ouvindo nas barbearias, na verdade ele era amigo dos barbeiros! Então… o meu mestre, depois… quem me aperfeiçoou cada vez mais, sempre “de ouvido”, ou seja, “sem música”, foi o Mestre Costantino Vito, um barbeiro da minha terra, de San Vito dei Normanni, enfim, onde… além da arte da música ele também exercia essa profissão de barbeiro. Ou seja, cortava barba e cabelo, não lavava com shampoo, não fazia mais nada porque não tinha água quente dentro da sua loja… e isto resumindo… depois lentamente, ao longo do caminho…
Francesco: Veio tudo o resto?
Mimmo Epifani: Veio tudo o resto! Veio o conservatório, veio a banda, vieram os amigos com quem tocámos juntos… Suíça, Florença e agora voltei ao básico, porque você sempre volta para onde começou… para fazer as coisas bem feitas, não se pode trair as origens e o lugar onde se nasceu!
Francesco: Isso é muito interessante porque, mesmo o meu regresso ao Sul [de Itália], tendo em conta que a minha família é do Sul, tem algo a ver! Então tu cresceste aqui no interior e aprendeste o bandolim aqui, depois nas barbearias avançaste e desenvolveste a tua técnica e foste para o conservatório e, com isso, começaste a tocar pelo mundo fora?
Mimmo Epifani: Eu fiz os primeiros concertos… os primeiros concertos, digamos assim… vamos chamá-los… as primeiras apresentações, um concerto… a tocar para um público… o meu primeiro público foi o da igreja, digamos… fora da barbearia. Antes tocava-se só na barbearia, só te deixavam tocar lá. Punham-te a guitarra na mão para começares a aprender e a acompanhar. Mas aí… era um público só de homens e pessoas que conheciam a barbearia! Ou seja, não era um público real formado por homens e mulheres, crianças… bem… não, nada! Eu conheci o público real quando comecei a tocar na igreja, porque o meu professor dizia-me:”Quando você sai daqui, como você toca aqui, você deve tocar como na igreja. O palco é como se você estivesse na igreja, é preciso respeito, para com os músicos que tocam contigo e para com o público que te ouve.”
E, a partir daí, fiquei sempre com esta coisa de tocar vestido de forma bastante sóbria. Aqui… bem, não… calções. Já vi concertos… onde… pessoas que vinham com calções e sapatilhas, ora… assim, tipo… eu, não! Ainda não consegui fazer isso! Mesmo a tocar no meio da rua, em qualquer lugar de desespero possível, é sempre… pronto! Um respeito pela música, tanto pelo instrumento, como por quem te ouve!
Francesco: No teu percurso musical, já tocaste pelo mundo fora, eu sei… tocaste em quase todos os países que existem… mas num certo momento… te cruzaste com a cultura portuguesa, Lisboa e o fado!
Mimmo Epifani: Sim Sim! Felizmente, uma vez, aconteceu quando eu morava em Florença, porque eu estava a estudar em Pádua no conservatório, mas eu morei em Florença por uma série de coisas… Comecei a tocar numa orquestraem Viareggio, num grupo que tocava nos navios e aconteceu que me chamaram para tocar para uns turistas japoneses que adoravam a música napolitana e também o bandolim. Então, eu estava a tocar num restaurante, num hotel de cinco estrelas muito prestigiado perto de Siena para estes turistas japoneses e a sorte foi que o chefe de cozinha era português e vinha do Alentejo. Fiz amizade com o chefe, porque depois comemos lá, acabámos… entre uma pausa e outra falávamos, eu ia para a cozinha porque sempre me interessei não só por música, mas também por arte culinária, enfim… certo? Porque o principal é isso: é a música e a comida, porque se você não come bem não pode tocar bem, inútil… estamos… não é? Essa é a minha filosofia! Pronto! E então, este chef português fez-me descobrir as canções de Amália Rodrigues e a cultura popular de Portugal, que tinha muitas semelhanças com a do Sul de Itália e pronto! Com a Puglia… onde estou! Os meus amigos portugueses, quando vêm aqui dizem que é uma espécie de Alentejo, então… tive a sorte de conhecer este meu amigo e… que me apresentou a Portugal e me levou a Portugal pela primeira vez , há 25 anos… 26 ou 27… 28 anos atrás… bem! E, a partir daí, a minha paixão, o meu amor e tudo o que aconteceu com a música e a colaboração musical cresceu!
Francesco: E colaborações com músicos portugueses… ah desculpa!
Mimmo Epifani: Também deve-se ao facto de, no meu percurso musical, ter conhecido o diretor de um festival, que é um dos festivais mais importantes da cultura lusófona e ele é italiano, de Pontedera, Marco Abbondanza. O festival chama-se Sete Sóis Sete Luas. Conhecendo-o e depois conhecendo outros músicos, enfim… no contexto dessas tournés que aconteceram e enfim…
Francesco: Acabaste por conhecer melhor a cultura portuguesa?
Mimmo Epifani: Conheci melhor a cultura portuguesa e os músicos portugueses!
Francesco: E tocaste recentemente num evento muito importante?
Mimmo Epifani: Sim! Num evento muito importante: “Cem músicos para Amália” porque era o centenário do nascimento de Amália, faria 100 anos este ano e convidaram-me para tocar e interpretar algumas músicas italianas que Amália cantou! Então fui o único músico que chamaram da Itália para fazer esse evento, num belo teatro, entre outras coisas: o Teatro São Luiz, em Lisboa!
Francesco: Lindo! E assim tu que tens… que também conheces bem a música napolitana e agora também estás a entrar, há já alguns anos no mundo do fado, como pensas que… quais podem ser os pontos de contacto entre estes dois géneros musicais… as duas cidades, as duas músicas?
Mimmo Epifani: As duas cidades, as duas músicas, são… aparentemente distantes… mas muito próximas… tanto no poema, na letra, nas palavras e também na música, porque… existe a canção do fado e há também a serenata napolitana, certo? A “posteggia” é feita de bandolim, guitarra e um homem que cantava! Em Portugal, por outro lado, há o homem e a mulher que cantam, que tocam guitarra de fado, a viola que é uma guitarra normal como as que temos aqui e agora há também a adição do baixo, antes não tinha… e uma mulher que cantava de xaile, sempre com pinta… como dizia o meu professor, sempre… ou seja, até os fadistas têm sempre que se vestir de alguma forma… elegante! E essa era a cultura! Depois a comida é a mesma, é uma coisa linda, mais do que a comida, também o convívio… Portugal é um país que tem a ver com música e comida… muita afinidade com o Sul de Itália e com Nápoles também!
Francesco: Perfeito! Voltando um pouco à cultura local daqui… em relação ao Circolo Mandolinistico [Clube Bandolinístico], tu também foste um dos protagonistas?
Mimmo Epifani: Não! Eu juntei-me ao Clube Bandolinístico depois, um dos protagonistas é o mestre que faleceu, já não está lá, esteve há alguns meses… Federico di Viesto, que abriu este Clube Bandolinístico, que na realidade, antes… foi aberto em 1935 se não me engano… ’35 ou ’37… depois foi fechado por uma série de coisas, que a guerra tinha chegado… e depois Federico di Viesto reabriu. Federico di Viesto depois encerrou-o… porque, resumindo, tinha uns esquemas um pouco, digamos… antiquados, não? Faziam sempre as mesmas coisas, mas a sorte foi que entrou lá o Giuseppino Grassi, que é outro bandolinista de San Vito, que queria reabrir o clube e queria fortemente que as atividades fossem retomadas. Então agora eu também participo com Giuseppino nas atividades do Clube Bandolinístico, que é uma realidade tão importante de San Vito dei Normanni. Ou seja, da nossa terra e que também está a ganhar espaço em toda a Itália e espero que no mundo!
Francesco: Poderia tornar-se um centro de bandolim no sul de Itália de referência para muitos músicos?
Mimmo Epifani: Sim, sim! Certo!
Francesco: E a resposta dos jovens, como é? Eles estão a aproximar-se da música popular?
Mimmo Epifani: Eles estão a aproximar-se da música popular, infelizmente de uma forma, às vezes, demagógica, errada… porque agora a música popular tornou-se mais do que apenas música para ouvir, também é uma tradição sobre a qual… se pode trabalhar e talvez desenvolver, certo? De uma forma moderna, porque não é que se possa fazer música tradicional como era há cem anos… ou há cinquenta anos… é preciso saber bem como se fez para talvez remodelá-la de alguma forma, é isso que eu faço nos meus álbuns, certo? Por outro lado, para alguns jovens, essa música popular, por assim dizer… a pizzica tarantata, na aldeia de San Vito há essa dança de San Vito, a pizzica… que se tornou uma moda, então sendo uma moda fazem de uma forma… pois! Na minha opinião, às vezes… até de uma forma errada, infelizmente!
Francesco: Ok! A barbearia também foi reaberta?
Mimmo Epifani: As barbearias sempre estiveram abertas… agora, retomámos aquela antiga tradição que existia antes! Uma tradição “velha” mais do que “antiga”! Não, eu diria também antiga… porque… há mais de duzentos anos atrás eles tocavam… tocava-se nas barbearias e ensinava-se a tocar instrumentos e também entretinham as pessoas que iam cortar o cabelo e fazer a barba, digamos! Clientes!
Francesco: Isso é lindo! E tu encontraste essa tradição em outros lugares do Sul de Itália?
Mimmo Epifani: Sim, Sim! Não… em outros lugares do Sul de Itália, em toda a Itália até Roma sempre houve essa coisa do barbeiro, porque eles encontravam-se, brincavam e conversavam sobre outras coisas, enfim, havia uma espécie de centro de… cá! De reunião da pequena cidade, o barbeiro sabia de tudo… entendes? As histórias de toda gente… e toda a gente falava sobre os seus problemas e depois tocava-se… e pronto! Um ponto de encontro, pronto!
Francesco: Então a música tradicional foi transmitida naquele ponto de encontro social, que era a barbearia.
Mimmo Epifani: Na barbearia, sim! Naquela ponto de encontro que era a barbearia… porque aí depois chamavam-se os barbeiros para irem fazer o pequenos concertos, não é? Para curar até as picadas das “tarantate” e os chamados, enfim… tarantati! Aqueles que foram picados ou beliscados por uma hipotética aranha, enfim… mas esse é um tópico um pouco maior para abrir… que merece… uma coisa específica!
Francesco: É claro! E para concluir, gostaria de te perguntar: tu como músico além de … ser humano, todos nós passámos por esse período difícil nos últimos dois anos, gostaria de saber como viveste, enquanto músico, o período do lockdown, a pandemia, como foi para ti?
Mimmo Epifani: Olha! Eu fiquei com muito medo na realidade, porque eu nunca tinha vivenciado uma coisa dessas… a conversar com os idosos, porque eu adoro estar com os idosos, porque eu aprendo muito com eles, enfim… eles disseram-me que nem na época de guerra aconteceu uma coisa parecida… porque estamos acostumados a viajar, a tocar, a lidar com o público, não é? É como… para nós, é o nosso pão de cada dia, porque se não tocarmos, não estamos no centro das atenções, nos sentimos um pouco… Então, sendo que não se podia sair com o carro, não podia se andar no meio da estrada, andar sempre com essa máscara até agora… não? A obrigação também de levar a vacina e coisas que a gente talvez, a gente não queira fazer… mas eu tinha que fazer de propósito porque… eu tenho pavor de picadas e essas coisas assim… não porque sou contra a vacina, pelo contrário… se for bom… vamos torcer para que seja bom! Bem… mas eu fiquei apavorado e tive que fazer de propósito porque não tendo o Green Pass, não te deixavam subir ao palco e toda essa história… então eu fiquei assustado! A certa altura, comecei a entender que tínhamos que conviver com isso… e como toda a gente eu estive em casa, a escrever música e… mas não música triste, não. Eu nunca fiquei triste… não! Pelo contrário, fiz um caminho, digamos assim… comecei a tocar e a estudar para quando terminar… ser mais… também foi um momento de reflexão e estudo, de estudo, é isso!
Francesco: Ah que bom! Então aproveitaste para… nesse sentido foi positivo?
Mimmo Epifani: Sim, Sim! Mas todas as coisas são positivas! Até esse vírus que veio, eu não sei! Sinto muito pelas pessoas que morreram e não sobreviveram, que ficaram doentes… mas de alguma forma isto também nos fez entender que… houve um momento da nossa vida, em que tínhamos abusado demais de tudo… uma coisa demais, demais…
Francesco: Ao extremo?
Mimmo Epifani: Ao extremo de tudo! Então houve uma coisa superior a nós, eu acho… eu vejo dessa forma, que nos disse: “vocês têm que se acalmar um pouco!” Ainda por cima, quem sabe de onde vem esse vírus? E na minha opinião, essa doença não acaba nem com remédios, nem com vacinas, nem com médicos, nem com cientistas… ela vai acabar quando o Senhor Nosso Deus quiser! Acho que é a minha opinião!
Francesco: Ok! Obrigado Mimmo!
Mimmo Epifani: Obrigado a ti Francesco!
Francesco: Olha, para o público português, que talvez vai ver esta entrevista… se quiseres, diz como podem ouvir a tua música e onde… um website?
Mimmo Epifani: Sim! Há um site http://www.mimmoepifani.it e depois nos vários motores de busca, na internet, youtube, spotify, todas essas coisas modernas que eu não conheço bem… enfim! Basta colocar Mimmo Epifani no computador e depois aparece!
Francesco: Encontram a tua música! Obrigado mais uma vez Mimmo!
Mimmo Epifani: Obrigado a ti Francesco e esperamos… que nos recuperemos o mais rápido possível de todas essas coisas más que estão a acontecer!
Francesco: Obrigado mais uma vez!
Mimmo Epifani: Obrigado!
Timoteo Grignani cresceu numa família de arte, conhecida como “Girovago e Rondella” e, desde cedo, pisou palcos com os seus pais num teatro popular composto por música ao vivo, palhaçadas, fantoches. Depois de uma longa estreia na Grécia, mudam-se para Itália e descobrem o teatro de rua.
Além de aprender as artes cénicas no âmbito familiar, fez tournés com projetos de música e teatro pelo mundo. Reside entre Lisboa e Itália e colabora com vários projetos, entre os quais se destaca o grupo Ayom. Tocou também com Forró Mior e a Orquestra Latinidade, entre outros.
Em resposta à situação de atual emergência devida à pandemia do COVID-19 e à necessidade de promover iniciativas que possam avaliar e atenuar o impacto no âmbito das artes performativas, investigar os efeitos da crise, com enfoque no sector da música, documentar as estratégias aplicadas pelos artistas nas suas atividades criativas e de performance, o Projeto Ágora convida Timoteo Grignani, para compreender os efeitos provocados pela crise sanitária, quer no nível individual, quer no âmbito do sector cultural em Portugal.
Francesco: Oi Timo! Boa noite e obrigado por vir aqui para estas entrevistas e conversas do Projeto Ágora. Vamos falar em italiano para nossos amigos da Itália, depois vamos colocar legendas para nossos amigos portugueses. Podes te apresentar, se quiseres…
Timóteo Grignani: …vai! Apresento-me, sou Timoteo, Timoteo Grignani e sou músico. Nasci na Grécia e foi aí que começou a minha paixão pela música e o meu conhecimento, porque com a minha família, que também são artistas, mais… eles fazem teatro de marionetas e teatro de figuras, tive a possibilidade desde criança de conhecer diferentes músicos e abordar a música de tal forma… no começo infantil, não é? Como um jogo e depois, ao longo dos anos, eu enquadrei mais ou menos o que eu queria fazer quando crescesse. E agora aos 29 anos encontro-me a fazer o que sempre quis, com um projeto principal chamado Ayom, que é a banda com a qual estamos a tocar de momento. Somos 6 elementos e nos últimos dois anos fizemos duas tournés esplêndidas e depois parámos no ano passado, resumindo… mais ou menos em Março, como todo o mundo, parámos, mas apesar disso ainda, no ano passado, conseguimos fazer alguns… espetáculos, concertos que, em suma, permitem-nos continuar com a esperança de podermos retomar o mais breve possível…
Francisco: …bom! Eu queria perguntar-te, na verdade, então desde março passado houve… houve todo o problema da pandemia global, então eu estava interessado em saber no nível económico como esse bloqueio de concertos tem um pouco… teve um impacto na tua vida, então tu também vives de circo e de teatro, então…
Timóteo Grignani: …claro! Sim! Foi um grande bloqueio porque claramente, economicamente para um músico em geral é sempre muito difícil, certo? Tens sempre que ficar um pouco em equilíbrio com a economia, com a chegada do Corona [vírus] foi um desastre como para todos, tanto para mim, quanto obviamente para a minha família, porque todos são artistas. Então todos vivemos principalmente do trabalho que é feito por nós, no verão, certo? Os músicos geralmente trabalham por temporadas, então no verão tu fazes… tentas trabalhar o máximo possível para guardar o dinheiro e então no inverno podes viver pacificamente. Obviamente neste verão [2020], porque foi bastante difícil para mim e claro que sou… levou-me a ter de regressar a Itália, pelo menos durante este período. Porque antes estava em Lisboa e ainda assim claramente, sem datas, sem possibilidade de trabalhar, era difícil ficar em Portugal. Também pelo facto de eu ser italiano e, qualquer ajuda que viesse depois, poderia recebê-la se estivesse em Itália!
Francesco: E essa situação nunca te fez pensar, por exemplo, em deixar a música, mudar de emprego… já que eu tenho tantos amigos e pessoas conhecidas que estão nisso… eles tiveram uma grande carreira na música ou em outras digamos expressões artísticas, deixaram um pouco…
Timoteo Grignani: É! É difícil para mim porque… para mim não é propriamente uma escolha de vida, no sentido de que não cheguei a um ponto da minha vida em que abandonei o que fazia, para seguir a carreira de músico. Sempre viajei e sempre vivi de uma forma que ainda vivo, desde criança. Então, pensar em deixar é um pouco impossível para mim, não é? Não me passa nem na ante sala do cérebro, porque o trabalho que faço é o lugar onde me expresso, onde existo, então… não poderia… não existiria mais, vamos dizer! Não faria mais sentido!
Francesco: Diz-me se… se me puderes explicar, em Itália como… o que aconteceu em relação aos subsídios, aos apoios aos músicos, diria… subsídios…?
Timóteo Grignani: Sim! Graças ao trabalho que fizemos este verão com Ayom, conseguimos atingir um mínimo de datas exigidas pelo Estado italiano para poder aceder às ajudas, de forma simples… “simplesmente”! Com muita dificuldade, estando contudo bastante distante deste mundo da ajuda, é tudo uma coisa bastante nova, porque nunca houve realmente um campo, em Itália, que nos protegesse a nós músicos, ou que, de qualquer forma, nunca tenha dado apoio. Por isso, estas novas formas, digamos, de apoio que saíram para… durante o Coronavírus, na verdade, permitiram-me passar o inverno, digamos, um pouco tranquilo e tudo isso claramente graças às datas que neste verão conseguimos, entre uma coisa e outra, fazer…
Francesco: Quantas datas foram necessárias?
Timoteo Grignani: Foram necessárias sete datas para conseguir chegar ao bónus, justamente esse bónus que eles deram, então nada demais… digamos difícil, não é? Para grupos profissionais, apesar da pandemia em suma, sete datas… conseguimos fazê-las!
Francesco: Bom! E sentes-te satisfeito então?
Timóteo Grignani: Ah! Satisfeito? Não, eu teria preferido tocar e não receber esse dinheiro! Sinceramente… mas, é concerteza… é uma ajuda que funciona, que pelo menos, vem!
Francesco: Nesses concertos que fizeste no verão de 2020, terás tocado em locais com várias restrições, públicos com distanciamento social, máscaras. Como foi, o que sentiste?
Timóteo Grignani: Bem! Mais do que as máscaras e restrições que havia durante os concertos, eu estava interessado em… apenas uma coisa emocional, certo? Eu estava interessado em criar laços… voltar a criar laços com o público, como sempre aconteceu e eu esperava e queria apenas um contato humano com as pessoas. Não me importo com a máscara ou o distanciamento… quando toco dou tudo de mim e por isso tento alcançar as pessoas, procuro esse contato e não… as máscaras sinceramente não são… um limite…
Francesco: Um impedimento… e como sentiste o público? Em alguns casos… explosivo?
Timoteo Grignani: O público… explosivo, como nós, não é? No sentido de que quando não te permitem fazer o que tu mais quer fazer, aí depois é inevitável que a tua energia seja carregada pelo menos com o dobro e que o público precise, esteja com fome e seja necessário, certo? Para verem e presenciarem essa magia que pode ser um concerto, um espetáculo de qualquer forma artística, não é mesmo?
Francesco: Então, concertos ao vivo com restrições correm bem, porque de qualquer forma a comunicação está lá! A emoção está lá!
Timóteo Grignani: Lá está! Há definitivamente mais do que no streaming, na minha opinião… não?
Francesco: Exatamente, então… só falando em streaming, muitos festivais hoje trabalham em streaming, a partir de março de 2020 muitos músicos fizeram… gravaram performances de streaming ao vivo em casa, zoom… eu mesmo já participei de alguns, dois ou três… então, afinal todos queriam fazer, tornou-se uma coisa meio… demasiado comum, isso… e surge a pergunta: essas transmissões ao vivo sem plateia, no estúdio… poderão ser um novo formato de performance para o futuro? O que achas?
Timóteo Grignani: Bah! Esperemos que não, esperemos que não! Porque para mim o concerto, o live é só isso… não é só o momento do concerto, é o momento em que decides ir ver um espetáculo. Como público, sais de casa, fazes todo o caminho até a uma sala, uma praça ou onde é o concerto e então é algo maior, sabes? É um movimento que fazes, um esforço físico que fazes para chegar a um lugar e receber uma energia em troca. Ficar em casa para ver um concerto, também aconteceu, eu assistir a concertos em streaming, mas não podes ter a mesma concentração, o mesmo envolvimento emocional que podes ter quando te mudas de lugar e decides ir fazer alguma coisa…
Francisco: …claro!
Timoteo Grignani: É uma “romanticidade” completamente diferente e há outra poesia em torno dela.
Francisco: Tudo bem! E ao nível de… digamos, durante os vários confinamentos, como é que viveste a questão mais criativa, já que possivelmente não podias ensaiar com o teu grupo, porque estavam todos… dispersos…?
Timoteo Grignani: Claro! Porque estávamos todos distantes…
Francesco: …no mundo e não eram possíveis encontros, mas como viveste a questão criativa?
Timóteo Grignani: Bah! Eu vivi bem a questão criativa, porque foram fases diferentes, não é? Ou seja, a primeira fase do primeiro lockdown foi uma coisa nova para toda a gente… então não sabíamos como fazer, o que fazer… então foi interessante poder aproveitar e ver um pouco qual era a situação, não é? Normalmente, quando trabalhas, tocas e recortas alguns espaços, certo? Ser criativo, poder trabalhar na criação de algo, então foi um em que podíamos trabalhar a criatividade. Com o primeiro bloqueio, percebemos que realmente tínhamos muito tempo…
Francesco: … até demais…
Timoteo Grignani: E por isso, claramente como muitos outros colegas, comecei a gravar, a tocar, a procurar linguagens que nunca tinha procurado, porque… exatamente, eu precisava e queria aproveitar aquele período, que eu sabia que seria um período morto e parado, para crescer de qualquer maneira, não é? Para isso, porém, o mais bonito e engraçado para nós, muitas vezes, é essa parte, a parte criativa, não é? Quando estas à procura de inspiração e, portanto, tudo o que viste, todas as coisas que ouviste durante todos os períodos anteriores, podes finalmente concentrá-las e torná-las em algo diferente e tu… Então, a primeira parte foi assim. A segunda parte, também tendo uma filha de dois anos, digamos que investi o tempo junto com meus irmãos, ao comprar terreno em Itália e criando um espaço onde teremos um estúdio de gravação e espaço para criações, para espetáculos, como um armazém também para todos os espetáculos que temos com a minha família, porque temos muito material… então concentrei-me num projeto grande, indo um pouco contra a tendência, não é? Em comparação com a situação de muitos, porque decidimos num período económico absolutamente difícil… de qualquer maneira, investir, porque obviamente acreditamos nisso e temos certeza de que algo vai mudar e que, portanto, estamos lá . .. simplesmente, agora estamos a preparar-nos para melhor, para depois continuar nosso caminho!
Francesco: Muito produtivo, excelente!
Timoteo Grignani: Muito produtivo, sim! Tu tentas…
Francesco: …e portanto, projetando para o futuro, digamos agora… como músico, mas também possivelmente como artista de circo e teatro, que estratégias podemos pensar como músicos, se esta situação continuar por um tempo mais longo?
Timóteo Grignani: Bem! Depende, não creio que possa ficar muito tempo parado como agora, porque em todo o caso as coisas continuam e também na minha opinião, precisamente a nível político é difícil gerir uma situação destas durante muito tempo, então estou confiante no fato de que em qualquer dos casos um caminho pode ser encontrado no menor tempo possível. Conheço vários amigos organizadores e pessoas que estão do outro lado, que não são artistas que… trabalham em organizações que estão a dar o seu melhor para poder fazer os festivais este verão, o que para nós já é algo muito importante. E, portanto, ver de qualquer forma que também do outro lado há um esforço, há a tenacidade de ainda poder encontrar uma solução, dá-me confiança e espero que já este verão possamos tocar e a circular!
Francesco: Excelente! Considerando talvez este momento, como um momento de mudança, um recomeço para recomeçarmos todos juntos em direção a algo melhor, digamos assim…
Timóteo Grignani: É! Estas são as ocasiões, não são? Se não quando?
Francesco: Ao nível, digamos… das expectativas do mundo da política e em relação ao sector artístico, que expectativas, talvez um pouco melhores, haverá?
Timóteo Grignani: Bem! Espero que sim! Esperamos que especialmente em Itália, mas também em Portugal, seja mesmo algo europeu, certo? A salvaguarda de… enfim, do mundo cultural e do mundo artístico, porque senão estamos simplesmente perdidos no mar da burocracia, sem ter voz, certo? Enquanto há outros países na Europa, como a França, onde existe um sistema que permite ser independente, pagar impostos e poder ter apoio no desemprego que te permite… porque o artista por natureza não trabalha todo o ano todo, certo? Ele não tem um emprego para onde vai trabalhar todos os dias…
Francesco: Mesmo que, para ensaiar ou para produzir um espetáculo, trabalhe quase o ano todo, mas ninguém sabe…
Timóteo Grignani: …claro! Mas ninguém sabe… exatamente! Exatamente! Ou pelo menos, em Itália e em Portugal por enquanto ignoramos, mas aqui está! Digamos que é uma situação que deve ser gerida!
Francesco: Tudo bem! Então olha… obrigado por este grande contributo, Timo! Eu queria saber se desde março de 2020 produziste algo em termos de música, se podes nos recomendar alguns temas, ou talvez dois… para anexar a esta entrevista, para que quem a ouvir, poder escutar…
Timóteo Grignani: Bem! Nós fizemos… apenas para ficar em contra tendência, contrariar a tendência, lançámos um álbum durante a pandemia, bem no início da pandemia e…
Francesco: …com o grupo?
Timoteo Grignani: Com Ayom! O nosso projeto principal e foi um pouco arriscado, porque quando tudo parou e no verão foi tudo cancelado… resumindo, não era realmente a coisa mais natural, lançar um álbum. E, em vez disso, seguimos em frente e afinal… parece que fizemos bem, porque ganhámos o prémio Songlines como a melhor banda de 2021!
Francisco: Fantástico!
Timoteo Grignani: Fantástico e mítico! E isso tem nos dado uma grande visibilidade nestes tempos em que, de facto… há poucas produções ao vivo. Zero! Então, ter um álbum que foi reconhecido e premiado, incrivelmente, neste período mau para todos, a nível de trabalho, nos deu uma força incrível. Por isso, agora esperemos que… pronto, que as coisas voltem ao normal, porque queremos apresentar este disco e que todos o ouçam. Dois temas do disco que eu recomendo, então! Vou recomendar “Baile das Catitas” porque é uma música que eu criei, e claro, com o Alberto e a Jabu. Tem um convidado especial que é o Paolo Angeli, que é um músico amigo, que entre outras coisas também lançou há pouco o seu novo álbum e que tem um projeto de guitarra da Sardenha. Então também vos convido a ir procurar algo dele porque é muito interessante. Enfim, se por acaso não ouvirem o seu álbum, vão poder ouvi-lo no nosso álbum, em “Baile das Catitas”, a música em que ele está presente. O outro tema que recomendo…
Francesco: Existe o vídeo no youtube de “Baile das Catitas”?
Timóteo Grignani: Do “Baile” não! Não temos vídeo…
Francesco: …ok, vamos colocar a música…
Timoteo Grignani: …coloca a música e ouves!
Francesco: Uma proposta com um vídeo?
Timoteo Grignani: Uma com um vídeo… bah! “Cachaça e macarrão”… não! “Me deixe ser”, porque eu fiz o vídeo!
Francesco: E?
Timoteo Grignani: E então… precisamente, “Me deixe ser” é um dos três singles que lançámos antes do lançamento oficial do álbum, é uma música que o Alberto e a Jabu escreveram e eu tive a honra de fazer o vídeo em stop motion, com desenhos recortados, mais de 5000 desenhos que fiz para fazer esse vídeo!! Foi uma experiência interessante! Por isso, convido-vos a ouvir a música e assistir ao vídeo!
Francesco: Obrigado Timo pela positividade!
Timóteo Grignani: Grande Ciccio!
Francesco: A tua mensagem e a tua contribuição serão úteis para muitos dos nossos colegas, amigos e público em geral, que virão ouvir as entrevistas. Obrigado novamente!
Timoteo Grignani: Um prazer, grande Ciccio!
Francesco: grande Timo! Aplausos!
Bárbara Wahnon é cantora, de origem cabo-verdiana e guineense, nascida em Lisboa. É bisneta de Maria Barba, uma das primeiras cantadeiras cabo-verdianas a internacionalizar a morna. Em parceria com a Associação dos Músicos da ilha da Boa Vista, organizou e divulgou em 2020 a campanha solidária “7 dias 7 mornas”. Entre os vários projetos musicais da cena nacional, colabora com Gospel Collective e é co-fundadora do grupo Tune Up Voices. Bárbara está compondo e arranjando as músicas para o seu primeiro EP e apresenta-se em vários lugares de Lisboa com o seu projeto a solo.
Em resposta à situação de atual emergência devida à pandemia do COVID-19 e à necessidade de promover iniciativas que possam avaliar e atenuar o impacto no âmbito das artes performativas, investigar os efeitos da crise, com enfoque no sector da música, documentar as estratégias aplicadas pelos artistas nas suas atividades criativas e de performance, o Projeto Ágora convida Bárbara Wahnon, para compreender os efeitos provocados pela crise sanitária, quer no nível individual que no âmbito do sector cultural em Portugal.
Bárbara Wahnon: Olá, o meu nome é Bárbara Wahnon, sou cantora e também trabalho numa clínica de transplante capilar, em recursos humanos e marketing!
Francesco: Bem-vinda!
Bárbara Wahnon: Obrigada!
Francesco: Olá Bárbara, obrigado por estares aqui e pela disponibilidade por ter esta conversa no… dentro do contexto do Projeto Ágora e desta pesquisa que está sendo feita e gostava de começar… sabendo já a priori que tu trabalhas numa clínica, assim queria de qualquer maneira… eu começo sempre por perguntar aos músicos e já que tu és cantora, quais foram os efeitos financeiros desta pandemia, desde o princípio de Março de 2020, isto… podes eventualmente comentar isto em relação à tua profissão de cantora…
Bárbara Wahnon: …sim! Óbvio que a pandemia veio afetar todas as atividades, mas nada se compara à forma como quem vive da música foi afetado, eu… ainda que tenha estes dois trabalhos complementares, sei lá… sou cantora, cantava bastante em casamentos, eventos privados, por tanto tudo isto deixou de acontecer, portanto… claramente que me senti afetada, mas também comparar a minha atividade com outros colegas que só vivem da música, talvez tenha tido mais estabilidade do que os meus colegas!
Francesco: E gostava de saber, tu normalmente cada ano tens um número de concertos, consegues fazer uma estimativa da tua atividade musical, por exemplo em 2019 ou antes de 2020, quantos concertos fazias? Com o gospel?
Bárbara Wahnon: Epá! Pelo menos todos… eu tenho a noção de todos os meses ter trabalho, nem consigo quantificar, mas principalmente então na altura do natal, chegávamos a que… a semanas que era quase todos os dias!
Francesco: Uns 50/70/80 concertos por ano…?
Bárbara Wahnon: Talvez…
Francesco: …e em 2020? No natal também não fizeram, fizeram algo no natal?
Bárbara Wahnon: Fizemos… eu lembro-me de fazer por aí uns dois ou três trabalhos se tanto… e acho que estou a exagerar, mas depois também eu estive em Cabo Verde, não é? Eu fui apanhada na altura da quarentena em Cabo Verde, portanto por além de também não poder estar fisicamente e aproveitar determinados trabalhos que pudessem surgir, acabei por fazer alguns trabalhos em streaming, em que nós gravamos e enviamos os trabalhos, mas este não foi no natal…
Francesco: …foi muito menos… que em outros anos?
Bárbara Wahnon: Sim, sem duvida!
Francesco: E a vivência em Cabo Verde foi boa?
Bárbara Wahnon: A vivência em Cabo Verde foi espetacular!
Francesco: Foste apanhada em Cabo Verde pela pandemia? Sorte… entre aspas…
Bárbara Wahnon: …sim! Mais ou menos, porque também tive a oportunidade de perceber o impacto de… pronto o impacto da pandemia foi mesmo global e em Cabo Verde o pessoal é altamente dependente do turismo, do pessoal que vive da música e… não, sei lá eu não consigo… foi mesmo devastador perceber, que… porque vi mesmo que… Cabo Verde depende mesmo do turismo, depende mesmo do pessoal estrangeiro que vai aos hotéis, vai aos restaurantes, sem este turismo não há atividade económica e eu tive a oportunidade de conhecer músicos enquanto lá estive e… zero trabalho! É que depois nem sequer há alternativas, enquanto cá em Portugal eu ainda posso considerar que, ok! Não tens trabalho na música mas se calhar consegues fazer outro tipo de trabalho, ainda que também precário, mas se calhar tens outras alternativas, lá em Cabo Verde… ok! Ou vais pescar para comer, ou também ficas… vi casos muito complicados
e… pronto depois o pessoal sobrevive também muito à conta da solidariedade dos pares e entreajuda, eu própria também fiz uma campanha solidária e outros músicos fizeram campanhas na internet, mas nada é suficiente ou nada foi suficiente, no meu entender!
Francesco: Olha! Passou atrás de ti agora uma gaivota, mesmo a um metro… não! Muito interessante porque, obviamente eu nas próximas viagens queria fazer estas conversas também com músicos de outros países e evidentemente em Cabo Verde, numa ilha onde vivem do turismo assim é, particularmente devastador como disseste… imagino: não poder tocar, ou pronto! Não poder viver do seu próprio trabalho. Eu gostava de saber, então à partir da pandemia, tendo em conta que ficaste em Cabo Verde, como é que viveste este lado mais criativo da tua profissão, entre aspas assim… ou da tua carreira de cantora?
Bárbara Wahnon: Sim, de facto eu acho que por ter outro trabalho e de certa forma, não que também não tivesse a pressão no trabalho de nós mantermos no ativo, havia alguma estabilidade económica e isto também me permitiu estar mais em contacto comigo e com a minha criatividade, tentar escrever mais, tentar compor e também foi graças a esse período em que conseguia estar em casa a trabalhar lá em Cabo Verde, foi assim que consegui também aprender mornas e fazer a campanha e vim de lá cheia de pica para fazer coisas cá em Portugal na realidade, só que depois venho e pronto! Está tudo em confinamento, ainda apanhei uma altura em que foi possível fazer algumas coisas, ainda cheguei a cantar em alguns restaurantes, coisas assim mais locais… mas pronto! O pessoal com medo de sair e não contagiar os outros ou também não ser contagiado, também não contribuiu para mais pro atividade a ter trabalhos em restaurantes e em bares e em sítios locais… e… exato!
Francesco: Foi bastante, então criativamente bastante produtivo, estiveste a trabalhar com músicos de lá, conseguiram ter tempo para ensaiar?
Bárbara Wahnon: Sim, sim! Mas depois também eu acho que é cultural, lá em Cabo Verde ok, se calhar não se tocava por dinheiro, não é? Mas pronto! Mas a música estava sempre presente e estávamos sempre a tentar tocar, cantar, sei lá! A trazer um bocado de luz na mesma, na vida das pessoas enquanto lá estávamos… é um bocado isso! Mas depois é doloroso chegar cá também, porque tenho uma data de amigos que só vivem da música, não é? E perceber que estão mesmo à rasca, perceber que a cultura cá em Portugal não é tida como prioridade e isto até influencia até a forma como, eu no meu caso específico podia ter decidido: ok vou ser música a 100% e não o faço ou nunca o fiz até agora por ter medo de ficar sem uma rede, sem um conforto neste tipo de situações, não é? E é por isso que admiro também muito quem vive só da música e quem tem coragem de estar a mercê da sua própria criatividade e da sua própria força de vontade e da sua pro atividade para criar e para fazer música e a arte a acontecer, independentemente das circunstâncias, não é mesmo fácil! E tenho mesmo pena que Portugal não consiga valorizar a cultura como deveria… pronto! É isso!
Francesco: Obrigado! Em termos de então, digamos de perspetivas futuras, o que é que achas que um músico, os músicos… tu própria… quais… como é que vai ser, quais estratégias poderá haver para sobreviver a isto?
Bárbara Wahnon: Uma coisa que eu achei interessante, mas também já oiço falar disto há imenso tempo, é que os músicos precisam de se unir para formar uma classe trabalhadora com direitos e deveres respeitados pelas entidades institucionais. Consegui observar algumas movimentações no sentido de voltar a construir sindicato dos músicos, ainda que depois também percebi que há um sindicato X e há outro sindicato Y depois o pessoal não sabe muito bem para quem é que há de se virar! Portanto claramente, o pessoal precisa de se unir, para conseguir ver os seus direitos respeitados e defendidos… estratégias!? Que mais estratégias? É porque é uma questão tão cultural em Portugal e infelizmente o pessoal ainda olha para um músico como aquela pessoa que só se está a divertir ou não encara a música como um trabalho, não conseguem perceber que por trás de um espetáculo, por mais pequeno que seja, estão horas e horas de ensaio, estão horas e horas de tentar dominar um instrumento, estão horas e horas de uma data de tempo investido e dinheiro investido e a própria mentalidade do consumidor em geral, do público em geral, também não abona a que sejam criadas políticas públicas que protejam os artistas, porque se de facto as pessoas se preocupassem em investir em cultura e em gastar em cultura ou em não menosprezar a atividade dos músicos, talvez a hierarquia das atividades económicas fosse diferente, não sei… portanto, é difícil trazer estratégias específicas, porque é política!
Francesco: E em relação à política, que espectativas poderias ter, por exemplo, para que melhorasse um bocadinho a situação da precariedade dos artistas em geral?
Bárbara Wahnon: Por exemplo, eu gostava que tivéssemos de facto um Ministério da Cultura que fosse ciente das verdadeiras preocupações da classe musical, não só da classe musical, agora falo da classe musical porque é a minha e mesmo assim é particular, ainda não sou ultra dependente da música, mas começar por reconhecer a atividade musical como uma atividade económica, como outra qualquer, não é? Que contribui diretamente para a força política que é a cultura, sei lá! Há tanta coisa a dizer, mas…
Francesco: …e em relação aos movimentos que aconteceram, assim de grupos como a União Audiovisual e outros quantos, há algum que gostaste de seguir em particular, ou que seguiste nas redes sociais, alguma coisa…?
Bárbara Wahnon: Epá! É que eu vi tantas coisas diferentes, vi tantos grupos diferentes a fazer coisas distintas, lembro-me daquela iniciativa do Ministério da Cultura, assim meio esquisito… de um festival que traz um amigo… sim…
Francesco: …tu estavas em Cabo Verde?
Bárbara Wahnon: Estava em Cabo Verde, sim, como é que é possível… é que é isto! Como é que é possível alguém a falar que isto está correto!?
Francesco: Mas o que levou à eliminação daquele festival, foi exatamente uma recolha de assinaturas, ou seja um movimento que se criou…
Bárbara Wahnon: …e eu conheço pessoas de ambos os lados, não é? Pessoal que aceitou participar e pessoal que não… pessoal que se recusou a lá ir por princípio e pronto! E de facto, também foi uma iniciativa que em vez de ajudar, também veio contribuir para uma polarização da classe musical, no sentido em que se identifica nos pequenos nichos de interesse, já estou a dizer mais do que deveria… não! Iniciativas fixes: o pessoal começou a fazer concertos online e a tentar arrecadar dinheiro… solidariedade na mesma, mas sei lá? Só se… os músicos são aqueles que se juntam sempre para juntar dinheiro, para contribuir para outras causas sociais e agora que os músicos precisam, pronto! Existiram algumas, mas nem se compara à mobilização do público em geral para ajudar a classe musical, existe a iniciativa da União Audiovisual, sim! Pronto que é bonita, não deixa de ser bonita mas… sei lá se não fosse a solidariedade de uns e dos outros acho que estava tudo bem pior, se não fosse a solidariedade entre classes!
Francesco: Exato! Em relação aos concertos online: todo o mundo se meteu a fazer concertos no zoom, agora os festivais estão se adaptando a este novo formato de performance, o que é que tens a dizer em relação a isto, se já tocaste ou fizeste coisas online, o que é que sentes nos concertos online, por exemplo?
Bárbara Wahnon: Sim! É assim: eu por acaso lembro-me de ter estado na Web Summit em 2018 e havia sessões da indústria musical, sobre o futuro da música e já na altura se falava na tendência das plataformas de streaming, também se falava de outras formas de aprendizagem na música, mas pronto isto agora não interessa… e foi curioso ver a rapidez com que a maior parte dos músicos se viu obrigada a encontrar outras soluções e eu participei, não por iniciativa própria mas a convite de outros artistas pra fazer concertos em streaming, percebi a complexidade da coisa e exigiu mesmo muita criatividade, muita dedicação, muita aprendizagem rápida em pouco tempo e consegui fazer o impossível e também percebo que nem toda a gente têm acesso aos mesmos recursos, por tanto nem toda a gente consegue ser rápido o suficiente para se adaptar a estas novas tendências e nem toda a gente gosta também de o fazer, mas pronto! Eu vejo com bons olhos, mas acho que também nada substitui a presença física, aquela transação emocional que existe entre o músico e quem o vê, uma espécie de energia que nós envolve e que quando é… quando tens um ecrã digital acho que há algo que se perde, não é bem a mesma coisa!
Francesco: A comunicação humana…
Bárbara Wahnon: …sim! Porque é fixe ver vídeos e assim, mas nada… pelo menos para mim, nada substitui um ao vivo e acho que é isso: estamos todos sedentos de estar ao vivo, de nós sentirmos uns aos outros, então eu a cantar em coro… sei lá… assim, em zoom é impossível, ainda tentamos ensaiar algumas vezes… mas pronto, não dá! Agora dizem que com o 5G… já vai ser possível!
Francesco: Vai mudar o mundo!?
Bárbara Wahnon: Exato! Já vai ser possível! Mas eu, claro, vejo com bons olhos a evolução e acho que sim, acho que enquanto ferramenta e acho que é bom termos a capacidade de nos adaptarmos aos tempos, mas… nada substitui o presencial!
Francesco: E desculpa! Te aconteceu de tocar ao vivo no ano passado ou neste ano, estamos no princípio, estamos a sair do novo confinamento, te aconteceu de tocar em algum festival com restrições, plateia, uma pessoa sim uma pessoa não ou com máscara etc., sem poder levantar e dançar, etc.?
Bárbara Wahnon: Sim! Eu fiz… bem um festival não! Mas, cantei em sítios locais e pronto, o pessoal todo com máscaras, limite de pessoal, sítios também mais pequeninos, que por um lado também impedia ao pessoal que queria ver, não se sentia tão confortável a ir por serem sítios mais pequeninos, iniciativas a impedirem outras…
Francesco: …e a sensação? Como é que isto poderá ter afetado a performance?
Bárbara Wahnon: Opa! É estranho estares a cantar para pessoal de máscara, mas por outro lado também foi um alento ver que havia pessoal que sentia a necessidade e ia consumir na mesma a cultura, aqueles hashtags #aculturaésegura, não é? É ter que… exato! Do género, ser seguro andar de avião, mas não é seguro ir ver um concerto, não tem mesmo lógica! E que… fazer gravações para iniciativas televisivas pronto, com máscaras… mas pronto, depois chegas à parte em que estás a filmar e tiras a máscara e está tudo ok! Também cheguei ir à televisão, pronto! É de facto… há cuidados que são tidos em conta, mas, sei lá… durante aquele tempinho em que estás ali sem máscara não contagias os outros? Pronto! Não sei, é um bocado… eu percebo a lógica, não é? Está toda a gente a fazer o melhor que pode para conter o vírus, mas não é justo de todo para quem vive da música! Mas sim! Eu ainda me considero talvez privilegiada no sentido em que, lá fui tendo alguns trabalhos, mesmo que não muitos, mas fui tendo… e por causa do trabalho que tenho, consegui não ter as preocupações associadas à minha sobrevivência, não é? E admiro quem vive da música e quem consegue ter outras atividades também relacionadas às artes, mas não necessariamente os concertos, por isto olha: força aí para o pessoal, a continuar… também… a luta!
Francesco: Ótimo! Muito obrigado Bárbara, vamos acabar agora a nossa conversa linda, super enriquecedora, obrigado pelo contributo! Eu queria saber se durante este ano, o último ano… tens produzido algo teu, se a quarentena pelo menos trouxe algum “filhote” entre aspas… alguma canção, alguma coisa que tu queiras aconselhar nos, que é para nós podermos alegar a esta entrevista, para quem depois irá ouvir poderá ouvir a tua voz a cantar!
Bárbara Wahnon: É sim! Podem sempre, se tiverem curiosidade, verem a campanha “Sete dias Sete Mornas” que foi uma coisa super caseira que fizemos lá em Cabo Verde, assim em pouco tempo e que eu tenho muito orgulho ainda que se vejam todas as falhas e assim… mas tenho muito orgulho nisso e sim! Durante a quarentena tenho estado a compor e estou muito contente porque acho que vou conseguir lançar um tema em breve!
Francesco: Podes dizer como se chama e comentá-lo?
Bárbara Wahnon: Chama-se “Uma questão de identidade”, ou “Caminhos”, eu não sei muito bem…
Francesco: …ok! Não está ainda decidido… e o tema é isto: identidade?
Bárbara Wahnon: O tema é lindo!
Francesco: Não digo, a temática ou o argumento…
Bárbara Wahnon: …sim! É a procura pela identidade, a procura por direção, a procura por caminhos sãos!
Francesco: Caminhos?
Bárbara Wahnon: Sãos!
Francesco: Ah, ok! Caminhos Sãos! Perfeito! Então iremos, espero que esteja pronta em breve esta música e iremos, com um link ou alguma coisa, iremos mostrar esta música também!
Bárbara Wahnon: Sim, espero que sim! Que eu consiga quanto antes divulgar!
Francesco: Ok! Pronto! Muito obrigado mais uma vez, Bárbara para o teu contributo!
Bárbara Wahnon: Obrigada eu pelo convite!
Francesco: Muito obrigado, chau!
Giuseppe Grassi é um bandolinista de San Vito dei Normanni, cidade da província de Brindisi, em Puglia (Itália). Além de colaborar em vários projetos musicais, entre os quais se destaca o de Mimmo Epifani, outro conhecido bandolinista da mesma região, é coordenador do projeto Circolo Mandolinistico. A partir deste centro cultural, implementam-se várias atividades: o ensino deste instrumento às novas gerações de músicos, valoriza-se a cultura local e géneros expressivos do Salento, como a pizzica e a tarantella. Além disso, implementam-se oficinas de construção e reparação de instrumentos e a prática musical nas antigas barbearias da região.
Em resposta à situação de atual emergência devida à pandemia do COVID-19 e à necessidade de promover iniciativas que possam avaliar e atenuar o impacto no âmbito das artes performativas, investigar os efeitos da crise, com enfoque no sector da música, documentar as estratégias aplicadas pelos artistas nas suas atividades criativas e de performance, o Projeto Ágora convida Giuseppe Grassi, para compreender os efeitos provocados pela crise sanitária, quer no nível individual, quer no âmbito do sector cultural, neste caso na Itália.
Francesco: Boa noite grande Peppe!
Giuseppe Grassi: Boa noite!
Francesco: Estamos aqui num lugar lindo no sul da Itália, em Salento, San Vito de Normanni, estou passando para fazer algumas entrevistas e documentar um pouco a música no sul de Itália também, então peço que te apresentes rapidamente para começar…
Giuseppe Grassi:… sim! Eu sou Peppino Grassi, venho de San Vito dei Normanni, uma pequena cidade na província de Brindisi. Toco bandolim e um pouco de violão, mas principalmente instrumentos de corda relacionados com a família dos instrumentos dedilhados, portanto bandolim, mandola e mandoloncello. Aprendi a tocar guitarra sozinho e num verão aprendi, digamos… os primeiros acordes e depois fui tocar com um grupo de pessoas maiores de idade de San Vito, digamos… um grupo de mestres da tradição que havia ali… sim! Eles se encontraram… bem, sim! Eles tocam a sua música, música tradicional, canções de trabalho, serenatas, pizziche, pizziche pizziche. Um ano depois, eu… como queria aprender a tocar bandolim e não sabia como era… nem como era feito, eu tinha visto um professor, bem… mas eu nunca tinha segurado nem sequer no instrumento, não… fiquei intrigado, apaixonado por este instrumento, então contei aos meus pais acerca do meu desejo… e eles me levaram para outro professor de San Vito, que morava em frente da casa da minha mãe e ele disse: não! Olha, vamos esperar um pouco por enquanto, porque em Dezembro eu vou vir com um Clube de Bandolins! Isso em 2003, precisamente Federico… que foi um dos últimos mestres da tradição de San Vito, ligado ao bandolim e que teve esta genial ideia de reabrir o Circolo Mandolinistico [a partir de então Clube Bandolinístico], fundado em 1934. Porquê em 1934? Porque, digamos… em toda a Itália naquela época, o fascismo estava tentando… digamos… sim! Privilegiava esses trabalhos de… solidariedade, sociedade de ajuda mútua, pós-laboral, bandas musicais… na verdade cada cidade tinha uma ou mais bandas em que se tocava e também clubes de bandolim! Porque isso então, na verdade… deu a conhecer tanto ópera, operetas e música, a pessoas que não tinham… era um meio, digamos… de aculturar pessoas que simplesmente não tinham a oportunidade de ouvir operetas, ir ao teatro e emancipar-se culturalmente! E este clube foi fechado em com a chegada da Segunda Guerra Mundial e depois foi reaberto por Federico di Viesto em 2003!
Francesco: Depois de quantos anos de pausa?
Giuseppe Grassi: Depois… sim! De sessenta anos…
Francesco: …de pausa?
Giuseppe Grassi: Sim! Isto porque? Isso aconteceu porque em 2002, fechou a última barbearia! Porque em San Vito havia toda uma tradição ligada aos instrumentos de palheta e também às barbearias, especialmente aos artesãos. Porque quer os barbeiros, quer os artesãos, tipo os carpinteiros de arte fina ou de arte grossa, tinham mais tempo à disposição em relação a quem ia trabalhar nos campos, por isso podiam se dedicar à aprendizagem da técnica necessária para tocar estes instrumentos!
Francesco: De cordas?
Giuseppe Grassi: Cordas ou sopros! Estes instrumentos de cordas…
Francesco: …especialmente nas barbearias, então…
Giuseppe Grassi: …os barbeiros sim! Eles eram um colante, eram umas figuras particulares mesmo dentro da sociedade, representavam uma espécie de ponto de encontro, um clube enfim… para quem passava para conversar, ouvir música, ouquem ia para aprender a tocar! Muitas gerações aprenderam a tocar no barbeiro e houve pessoas que depois também se tornaram grandes bandolinistas, instrumentistas ou, digamos… ou até por prazer… enfim, eram eles que ensinavam…
Francesco: …eles transmitiam?
Giuseppe Grassi: Eles transmitiam a música, depois também houve uma tendência, digamos… da música culta, portanto de piano, que era outra… digamos duas escolas… ou era música popular que… ou você foi para a música clássica culta, portanto piano, apenas mais um sistema de…
Francesco: …de ensino?
Giuseppe Grassi: Ensino também…
Francesco: …também de repertório…
Giuseppe Grassi: …do repertório, sim! Agora, digamos… pelo que me contam, porque infelizmente não tive oportunidade de… sim, conheci as personagens mais recentes, mas não aprendi diretamente na barbearia, pelo que me contaram… as primeiras perguntas eram… ok! Você quer aprender de ouvido ou pela música? Com base no caminho que escolhias, então se preferias aprender música, então havia toda a fase de preparação, depois solfejo, notas e assim por diante… e então começavas a tocar… ou se dissesses a ele: não! Só estou interessado em tocar diretamente…
Francesco: …ias direto ao instrumento?
Giuseppe Grassi: Sim!
Francesco: Mas isso… esses dois ensinamentos foram no contexto da barbearia, não? Eram ambientes diferentes?
Giuseppe Grassi: Não, não! Ah, estas a dizer clássico? Não, eram dois ambientes muito diferentes, sim! Ou que então, precisamente, os barbeiros também conheciam as peças clássicas, ou as aprendiam com partituras ou discos ou algo assim! Havia também um teatro inicialmente, o Teatro Leonardo Leo, que era um teatro, o Cinemateatro, na década de 1920… onde também havia companhias teatrais e até companhias de… estas orquestras de Clubes Bandolinísticos, que eram orquestras que se apresentavam. Dos vários artigos de jornal que recuperei, aqui tratou-se de uma orquestra de 15/16 elementos, todos bandolins e violões. Havia também mulheres… e pronto!
Francesco: E então, desde 2003, vocês retomaram com o clube…
Giuseppe Grassi: então, sim … em 2003 Federico di Viesto reabriu este Clube Bandolinístico precisamente para dar continuidade …
Francesco: …a essa tradição…
Giuseppe Grassi: …a esse património que caracterizou, pronto! Que também caracteriza San Vito, para que não venha… não se perca… e eu ali aprendi a tocar o instrumento, aprendi… eu ia todos os dias e mesmo como técnica de ensino, não é como eles te falam assim agora: vai ao professor, ok! Faça isso, faça isso… tu ias lá… assistias e tentavas roubar, chegavas a casa e tentavas descobrir e aprender o que tinha roubado… pronto!
Francesco: Então para aprender, ias observar os mais velhos?
Giuseppe Grassi: Observavas, pensavas… ou seja, apenas um sistema “de ouvido” de…
Francesco: …observação visual e…
Giuseppe Grassi: …do ponto de vista visual, sim! E também aprender e desenvolver muito o ouvido, porque… ou seja, uma das características é essa também, não é? Música aprendida “de ouvido”, transmitida oralmente! Por que assim desenvolves… o que agora eles chamam de ear training…
Francesco: …ear training!
Giuseppe Grassi: Ou seja, ali era já uma base! Era englobada como… porque de facto, tinhas que te medir com os outros. E se chegasse um músico que tocava algo, tinhas que ser capaz de acompanhar e te orientar, pronto!
Francesco: Sim, sim!
Giuseppe Grassi: Porque mais ou menosas progressões harmónicas eram sempre aquelas… mas, a guitarra tinha uma função importante, seja para o acompanhamento, porque vinha… a guitarra tinha o papel de acompanhar por dar os baixos […]. Muito como no fado, não é? Se quisermos, ou seja, também a guitarra no fado acompanha e da o baixo…
Francesco: …a progressão harmónica…
Giuseppe Grassi: …a progressão! E sim, depois continuei os meus estudos, conheci Mimmo Epifani no clube e a partir daí… digamos que segui ele nos concertos e assim por adiante. Depois formei-me em estudo técnicos, porque me inscrevi no instituto técnico, porque ok! Digamos… se queria ser músico, bem no entanto teria sido bom conseguir um certificado, que já é alguma coisa, depois teria focado na música!
Francesco: Um certificado que possa conferir um grau!
Giuseppe Grassi: Sim! Entrei no Conservatório de Pádua, porque lá tem bandolim, há muita música clássica escrita por bandolim, apesar de não… de existir um preconceito contra este instrumento popular, muitas vezes associado ao cliché “pizza e mandolino”, existe este mito, não é? Que se trata de um instrumento pobre! Apesar disso o século XVIII foi a época de ouro para este instrumento, porque tocava-se nos salões! Vários compositores escreveram peças para este instrumento, porque se tocava nos salões! Ou seja, outra… fiquei curioso e tive a necessidade de entender uma outra abordagem a esse instrumento, isso!
Francesco: Sim! Através da música culta…
Giuseppe Grassi: …através da música, sim! Porque ali havia muita limpeza, técnica e também como género musical. Em suma, a música é toda linda, por isto… quer dizer, não digo toda: há música boa e música também… não digo má, mas… de base, também aquele universo me interessava. Depois de dois anos a atravessar a Itália, entre Puglia e o Norte, mudei-me para Roma e ali entrei na faculdade de antropologia. E enquanto escrevia a minha tese sobre os repertórios “dançáveis” dos barbeiros, que seria todo este género tocado pelos barbeiros, que eram chamados de “ballabili”, que incluía polcas, mazurcas, quadrilhas, operetas, pronto… várias músicas que serviam de facto para dançar. Voltei para San Vito para fazer… para concluir a minha tese e fui visitar os amigos do Clube Bandolinístico. Cheguei a estar numa reunião em que estavam a decidir fechar o Clube. Diziam: não aguentamos mais, basta! Fechamos! Fechamos! E eu disse, vocês estão loucos? A partir deste momento decidi voltar a San Vito e dedicar-me a este projeto, junto com outros amigos e outros mestres!
Francesco: Ótimo! E hoje como são…?
Giuseppe Grassi: Hoje, digamos desde há cinco anos, conseguimos montar uma orquestrinha de mestres artesãos, de amantes e… também: a beleza está no facto de que não somos todos profissionais e o amor pela música é a paixão onde… de facto tem quem sabe mais… e fala… e quem aprende, digamos! Há um aprendizado difuso e recíproco, isto… gosto de definir como recíproco! Montámos uma orquestra e tivemos vários concertos, fizemos um disco. Retomámos, digamos, este festival… inventámos este festival “Música nos Salões”, em que se toca exatamente nas barbearias! Revitalizámos lugares que foram lojas ou laboratórios fechados, tratámos da decoração e temos recebido músicos de fora mas ligados a este género e a este tipo de ambiente, a este imaginário. E há dois… há três anos fizemos parte de uma iniciativa para jovens, para iniciar práticas, digamos, políticas. A região de Puglia tinha implementado uma série de políticas juvenis sobre empreendedorismo! Então, digamos que propusemos estas atividades e retomar também a oficina social para reparação de instrumentos, onde… de facto, onde de facto não havia uma grande tradição de famílias de trabalhadores neste sector, mas havia todo um grupo de carpinteiros de arte fina, considerados… que trabalhavam também o ébano e que tinham uma dedicação e uma certa capacidade de trabalhar a madeira nos detalhes e que se dedicavam à construção e reparação de instrumentos musicais. A partir daí, nasce a ideia de retomar… já que no Sul de Itália não existem cursos de formação para dar uma oportunidade aos jovens, que acabam por ir longe da sua terra… o que por vezes é bom, ok! Ter uma parêntese de vida lá fora e novas experiências, mas também é justo ter oportunidades na terra em que se nasce, pronto!
Francesco: Certo!
Giuseppe Grassi: Então iniciamos este curso de formação gratuito para jovens que queriam começar este percurso e a sorte, digamos… é que um deles conseguiu entrar na Escola Cívica, uma das mais conhecidas de toda a Itália de construção de instrumentos, que é a Cívica de Milão! Por isso, este ano está já no segundo ano e digamos… a nossa… então, o nosso… diz: porque fazem isso? Porque, digamos… atrás há todo um trabalho, porque de facto… não é simples viver no Sul [de Itália]… enfrentar estas temáticas, mas a nossa motivação é a de tentar dar uma oportunidade aos jovens. Porque eles são o nosso futuro e precisamos destas oportunidades!
Francesco: E nestes anos de trabalho, sentiste que aumentou o interesse dos jovens?
Giuseppe Grassi: Na música popular? Sim, devagar, vai se afirmando também, ou seja… o instrumento é mais reconhecido, é reconhecida a sua história, porque havia várias pessoas que não conheciam esta história, porque de facto, repito: em 2002 a última barbearia fechou as portas. Pelo contrário, antes disso, havia umas vintes barbearias só ao longo da rua principal [do Curso], digamos… não é? Sim! Os jovens estão a aproximar-se, mas todavia falta aquela… sendo um instrumento que sofre ainda de vários preconceitos, estamos a trabalhar para que as novas gerações se aproximem deste instrumento. Digamos, que este é o nosso objetivo, a nossa missão, pronto!
Francesco: Ótimo! Existem no Sul de Itália outras aldeias, ou cidades onde existe esta tradição das barbearias? Eu, entre outras coisas, tinha-te enviado um capítulo de um livro que falava sobre a tradição das barbearias do Rio de Janeiro, por isso é um fenómeno que…
Giuseppe Grassi: …sim! É uma… digamos em todo o Sul do mundo, se quisermos considerar… havia barbearias em que se tocavam instrumentos de corda, ou outros instrumentos… Pelo contrário, no Norte… no Norte de Europa era mais forte a tradição do canto…
Francesco: …ah ok!
Giuseppe Grassi: E também na América [do Norte] existem estes quartetos vocais! Em todo o Sul, pelo contrário existe, digamos, esta predisposição para tocar instrumentos de cordas, como ainda acontece em Portugal, no Brasil… que depois, bem ou mal, o discurso é este… a música, nasce toda do dançável, se quisermos… das polcas, das valsas, que depois… como aconteceu com o choro brasileiro, misturou-se com outros ritmos africanos e assim por diante! E depois nasceu o choro, mas a base do choro são as polcas, a valsa, etc.!
Francesco: E no Sul de Itália, encontraste outra cidades… outras realidades parecidas?
Giuseppe Grassi: Existem, sim! Realidades com um grande número de músicos, bandolinistas e barbeiros, não! Não há… Podemos dizer que somos a única realidade… mas, ainda existe alguém que, digamos… leva para frente esta tradição, não há barbeiros que ainda tocam, mas alguém por aí existe…
Francesco: Interessante! Poderia fazer-se…..
Giuseppe Grassi: …na Sicília, sim! A intenção é essa! De facto, este ano, com este período de lockdown, devemos retomar as atividades do festival, a ideia é exatamente de chamar outros músicos que ainda praticam esta tradição musical, isso! Esta tradição, na Sardenha ou também em Lisboa e criar esta conexão entre nós e eles!
Francesco: Belíssimo! Interessante, a ultima pergunta seria, como viveram em todo este… nesta trajetória do período do lockdown, como foi aqui? Por exemplo, o vosso Clube Bandolinístico parou?
Giuseppe Grassi: Sim! O Clube… eh… o problema do Clube, bem… não podíamos.. não podíamos sair de casa, no primeiro lockdown… então parámos! Retomámos as atividades em junho de 2020, porque a situação estava um pouco bloqueada, então nos encontrávamos no campo e em zonas abertas, onde podíamos ensaiar para fazer um espetáculo, apesar de que não podíamos fazer o nosso festival. No segundo lockdown, não pudemos nos encontrar mesmo fisicamente, porque repito: a nossa sede não é muito grande, por isso não se pode… tendo em conta todas as normativas e assim por diante… não nos podíamos encontrar, isto! O problema é que tivemos duas grandes perdas no período do lockdown, porque o nosso cantor, o Mestre Unzino…. o Mestre Unzino Swing, que vivia para a música, ou seja… era mesmo, ali vimos o quanto a música te mantém vivo e qual o real valor da música, pronto! Ou seja, ele vivia só para aquilo e não pensava em mais nada, depois… tinha seguramente outros problemas… não foi só o lockdown com certeza, mas influiu bastante… ao ponto de… de facto, estando em casa, não havendo aquela verve e vontade de sair, de ir aos ensaios ou ao concerto, ou não havendo aquele estímulo que de facto o….
Francesco: …alimentava?
Giuseppe Grassi: Alimentava, sim! Então…
Francesco: …fortíssima esta história…
Giuseppe Grassi: …sim! Veio a faltar um dos nossos pilares… importante!
Francesco: Por isto existem efeitos reais…
Giuseppe Grassi: …eh, sim! Depois, também em tudo o resto, digamos se notaram os efeitos… sobretudo agora, que estamos a retomar as atividades de formação, em suma, várias…
Francesco: …toda uma série de coisas…
Giuseppe Grassi: …sim! Uma série de coisas que ficaram bloqueadas!
Francesco: E tu, pessoalmente, como viveste o lockdown, enquanto músico?
Giuseppe Grassi: …o lockdown, para mim o primeiro lockdown foi belíssimo, ou seja, mesmo bom! Ou seja, uma experiência paradoxal, ninguém esperava… paradoxal! Eu acho que nos interrogámos sobre o tempo, sobre a velocidade do tempo, ou seja, o tempo? Qual a sua função? Nós todos temos medo do tempo, corres e corres… pelo contrário, precisamos de ser mais calmos, mais… de facto muitas pessoas se dedicaram à cura de si próprios, não é? Da própria casa, da….
Francesco: …da própria vida?
Giuseppe Grassi: Da própria vida! O que para mim foi, ou seja… eu não sou uma pessoa que corre muito, digamos… tenho sempre uma abordagem slow na vida! Mas ali foi, nos primeiros três meses… digamos… para quem… afortunadamente não tivemos problemas, ou seja… seguramente outros os tiveram… não a viveram de maneira… preocupante, isto é, também quem…, ou seja, não foi um período simples, mas pessoalmente, para nós correu bem, pronto!
Francesco: O segundo pelo contrário foi….?
Giuseppe Grassi: O segundo foi um pouco mais pesado, porque entre várias… não podias sair, recolher obrigatório, leis discordantes, pois… podias fazer uma coisa e a outra não a podias fazer… afinal, foi um pouco mais pesado e durou muito mais… porque o primeiro foi em fevereiro, abril… maio, pois…. depois veio o verão e conseguimos ter um pouco de oxigénio! O segundo foi muito mais pesado porque foi desde novembro até o final de Junho passado… Maio… Junho… pois!
Francesco: Então, quase seis ou sete meses?
Giuseppe Grassi: …seis meses, pronto! Esta tensão que não saberes o que podes fazer, não poderess fazer previsões do que vai acontecer, porque há uma paralisia… a música, no primeiro lockdown, a música para mim nem existia, não me apetecia tocar, não…
Francesco: …e pelo contrário, no segundo?
Giuseppe Grassi: No segundo já… sim e não, porque tinhas eventualmente a possibilidade de ir visitar um amigo e portanto… de tocar, apesar que muitos fizeram música sim, mas a partir de um ecrã… mas não era a mesma coisa! A proximidade da música é outra coisa… ou seja, são vibrações que te chegam, uma outra… uma experiência e poder vivê-la na presença de outras pessoas e outra coisa é experienciar a música dentro de um computador, dentro de um ecrã, dentro de um….
Francesco: Óbvio! Esta situação do concerto em live streaming é muito discutida…
Giuseppe Grassi: …sim! É seguramente… algo a mais! E está bem! Ou seja, é um novo instrumento que é útil, mas não pode ser somente aquilo, ou seja, pode dar novas possibilidades. Quando um músico está a fazer um concerto… este pode ser visto a posteriori, pode ser ouvido outra vez… contudo os concertos tem de ser vividos! Pronto! Não… a música tens de a viver! Esta é a minha opinião! Seguramente, repito: isto vai ajudar os novos sistemas de… já existem tecnologias desenvolvidas com 5G, pronto… para diminuir a latência e assim. Então se eu estou em Puglia, posso fazer ensaios no mesmo momento com alguém que está em New York, sim! Isto há-de ter uns prós, mas também uns contras, porque não se pode tocar só online e estar longe uns dos outros, no quarto, se não…
Francesco: …perde-se…
Giuseppe Grassi: …perde-se mesmo o gosto de fazer música, pronto!
Francesco: Da emoção e da espontaneidade do “ao vivo”?
Giuseppe Grassi: Sim! Do olhar, das intenções, pronto… tantas coisas, do público!
Francesco: Da transmissão de energia, etc.
Giuseppe Grassi: Sim!
Francesco: Muito obrigado Peppe!
Giuseppe Grassi: De nada!
Francesco: Se puderes deixa-nos um link para quem ouvir a entrevista poder ver…
Giuseppe Grassi: …sim! O link do…
Francesco: …do nosso Clube…
Giuseppe Grassi: …sim! Do Clube Bandolinistico: circolo mandolinistico san vito dei normanni, basta escrever nos motores de pesquisa e vai aparecer!
Francesco: Ok! Grazie e mille…
Giuseppe Grassi: … di niente!
Francesco: E obrigado pela disponibilidade neste lugar maravilhoso, atrás de ti há um por do sol estupendo em pleno Salento! Belíssimo!
Grazie Peppe! Grazie!
Alberto Becucci é um músico italiano, compositor e ator de teatro que reside entre Lisboa e Florença. Toca acordeão em vários projetos, entre os quais se destaca o grupo Ayom. Toca também com Sea Bemolle, uma banda que veleja em águas mediterrânicas. No passado colaborou com vários projetos como Forró Mior, Orquestra Latinidade, Vinicio Capossela, entre outros. Trabalha também como ator de teatro, sendo autor da peça “Le Mille e una Bruna” (com Alessandro Riccio). Assinou a composição de várias bandas sonoras para o cinema, como a recente “The Glass Eye” (Duccio Chiarini, 2021), entre outras. Em resposta à situação de atual emergência devida à pandemia do COVID-19 e à necessidade de promover iniciativas que possam avaliar e atenuar o impacto no âmbito das artes performativas, investigar os efeitos da crise, com enfoque no sector da música, documentar as estratégias aplicadas pelos artistas nas suas atividades criativas e de performance, o Projeto Ágora convida Alberto Becucci, para compreender os efeitos provocados pela crise sanitária, quer no nível individual, quer no âmbito do sector cultural em Portugal.
Francesco: Bom dia, bom dia querido, caro Alberto, bem vindo aqui a esses pequenos encontros do Projeto Ágora, que está se desenvolvendo aqui em Lisboa, Portugal! Estamos aqui num lugar lindo… olha, não é? À beira-mar, se puderes te apresentar rapidamente assim, todo mundo sabe quem tu és, mas…
Alberto Becucci: o meu nome é Alberto Becucci, sou acordeonista, faço parte de um grupo chamado Ayom e vivo em Lisboa há 5 anos e sou músico!
Francesco: Muito bem, muito bem, obrigado! Então eu gostaria de começar essa nossa conversa… assim: perguntando-te, nós, então… completamos um ano desde o início das restrições, da pandemia, etc. Eu gostaria de saber como tudo isso, essa situação… quais foram os efeitos a nível de, digamos assim… eu diria para começar pelo lado econômico, como músico que viaja, que toca por aí… quais são os efeitos no final de um ano? Conseguiste trabalhar? Trabalhaste pouco, menos, etc.?
Alberto Becucci: Foram desastrosos como para todos, normalmente no verão conseguimos fazer uns… 30/40 concertos! Este ano conseguimos por milagre fazer 10, já tivemos sorte, mais tivemos sorte porque conseguimos fazer um concerto na passagem de ano nas Maldivas e… mas tirando isto, em suma, o trabalho diminuiu muito e do ponto de vista económico tem sido exigente, não tão dramático porque devo dizer que, ao contrário ao que sempre aconteceu, digamos ao nível dos auxílios estatais em Itália, porque ainda tenho, digamos, uma estrutura económica sediada em Itália, na realidade o estado ajudou-nos aos músicos com 600 € por mês e isso permitiu-nos sobreviver neste período. Então do ponto de vista econômico não foi tão dramático, mas do ponto de vista artístico de realização pessoal, é óbvio que não poder trabalhar, não poder fazer o que mais gostamos foi uma tristeza incrível!
Francesco: Sim! Podes explicar melhor um pouco mais tecnicamente, pelo menos para quem vai te ouvir em Portugal, tecnicamente como isso aconteceu?
Alberto Becucci: Sim! Na Itália eles exigiram ter pelo menos sete shows, digamos declarados com as contribuições pagas, ou seja, sete shows digamos oficiais e com esse número, que no final é bem pequeno, você pode acessar a ajuda deste e devo dizer que foi muito bom como ajuda em comparação com, por exemplo, falar com músicos que vivem em Portugal tivemos sorte. Além disso, o Ministero [da Cultura] também permitiu algum tipo de compensação, cada concerto cancelado o Ministério atribuiu € 70, que é o mínimo, digamos, da remuneração e, portanto, demonstrando que os shows também foram confirmados com emails, eventos facebook, o contrato não importava, porque como sabemos o contrato agora quase ninguém o faz mais e por isso também foi digamos uma forma informal… não tão rigorosa, mas permitiu-nos realmente demonstrar os concertos cancelados e isto também foi uma boa ajuda!
Francesco: É incrível, porque pessoalmente, de todos os shows que foram cancelados eu não recebi absolutamente nada! E apesar de, no início então com razão me pediram para fazer uma lista de concertos… a GDA aqui em Portugal, nunca tive nenhum retorno, digamos…
Alberto Becucci: …além disso em Itália havia também uma bolsa do IMAIE, que seria a contrapartida italiana da GDA, de 1000€ e outra contribuição não reembolsável do SIAE, que seria o SGA português e praticamente tinham…
Francesco: …a SPA?
Alberto Becucci: Ah sim, me enganei! O SGA é espanhol, ou seja, praticamente, aqueles que eram membros dessas empresas, digamos… pertencem à categoria “músicos” e por isso receberam um budget, que redistribuíram entre os membros, digamos… de forma igualitária e esta foi também devo dizer uma boa… uma ajuda em suma, um suspiro de alívio….
Francesco: …então te consideras bastante satisfeito com esses apoios que foram feitos na Itália?
Alberto Becucci: Sim! Considero-me bastante satisfeito também porque até agora, digamos na Itália, a categoria de músicos sempre esteve sem estrutura e ajuda real, sempre foi uma questão… um problema que enfrentamos, mesmo falando com amigos de outros países… e enquanto por exemplo na França, Bélgica, Alemanha, colegas músicos vivem uma situação de conforto, no sentido de que com intermitência, pagando uma certa quantia de contribuições por ano, eles garantem uma espécie de salário mensal, então se demonstrar, digamos através da realização de um mínimo de concertos, que acho que são 50, que é músico profissional, o Estado reconhece o valor da sua profissão e por isso garante-lhe um mínimo que é de 1000/1200€ por mês e na França por exemplo, durante a pandemia prolongaram a intermitência, independentemente das datas, digamos demonstradas. Na Alemanha, na mesma, prestaram primeiros socorros no valor de 5.000€, que poderiam depois ser renovados através da demonstração de outros documentos e precisamente em Itália até agora, sempre fui extremamente céptico em relação ao sistema de segurança social que é extremamente oneroso: quando fazes um concerto eles levam mais de 20% e depois não dão garantia, por exemplo, o desemprego com sistemas simplificados e em qualquer caso os números de que falávamos eram ridículos e esta foi a primeira vez que digamos, serviu… serviu, porque nós músicos sempre tendemos a ser pagos talvez… de uma forma não… a ter algo mais, mas não exatamente respeitar a burocracia, é isso! Em vez disso, desta vez, foi a primeira vez… e isso pode mudar a mentalidade…
Francesco: …exatamente! Eu acho a mesma coisa especialmente aqui em Portugal também, praticamente… então disseste… houve um problema técnico aqui, disseste que te sentes muito satisfeito e disseste agora que eles chegam em abril, recebeste uma mensagem que diz…
Alberto Becucci: …sim! Hoje anunciaram que chegarão para os primeiros meses do ano de 2021, agora… 2400€, a comunicação já chegou, seriam 600€ para 4 meses!
Francesco: Ah perfeito! Ótimo!
Alberto Becucci: Então hoje vou oferecer o almoço!
Francesco: Ótimo! E olha, em vez disso, eu gostaria de saber, ao nível da criatividade e do trabalho criativo, como foi a experiência com tudo o que se passou?
Alberto Becucci: No nível criativo, digamos… digamos, como dizer a parada forçada, devo dizer que foi quase produtivo, ou seja, produtivo porque ter tempo para se dedicar totalmente à composição, ao estudo, que talvez durante anos em que os compromissos tanto de concertos como de produção te impedem de ter tanto tempo livre, mas este ano conseguimos… consegui também com os outros membros do grupo concentrar-me na fase de criação, composição, aperfeiçoei alguns conhecimentos que… aprender a gravar, então era como dizer… essa bolha do tempo, em um certo tempo era uma oportunidade de criar coisas novas, de estudar, de fazer aquelas coisas que a gente nunca tem tempo fazer, certo? Não, diz-se, este ano pessoal, vou fazê-los: vou aprender como funciona bem o Logic, como funciona…
Francesco: …ah!
Alberto Becucci: Sim! Essas coisas aqui…
Francesco: E este ano, entre outras coisas, ganhaste vários prémios com o grupo Ayom… ao nível de… digamos também de jornais, revistas, entidades europeias, digamos… como vives isto? Ter ganho todos esses… esses elogios em um ano em que tudo parou completamente?
Alberto Becucci: Bem, vamos dizer… decidimos lançar o disco mesmo assim, o novo álbum neste período, em que tudo estava parado e por um lado foi uma boa escolha devo dizer, porque talvez para uma maior atenção da mídia, recebemos prêmios, críticas, fomos indicados como os 10 melhores discos de música do mundo pela Songlines que é uma revista, digamos… a revista mais importante nesse campo, fomos nomeados entre as 4 melhores bandas, então vamos dizer todo esse trabalho de produção, trabalho de assessoria de imprensa para acompanhar o lançamento do álbum, foi outro… como dizer… estímulo para superar esse período de pausa…
Francesco: …maravilhoso! Apesar do ano que se passou, mas afinal… participei então em alguns destes concertos no verão de 2020 e tocamos em várias situações onde as restrições eram evidentes, em alguns locais havia precisamente distanciamento social, máscaras… isso, como viveste isso em termos de performance “ao vivo” como se diz em português?
Alberto Becucci: Mas… por um lado obviamente falta a emoção de dançar, falta a emoção de sorrir, a emoção de… principalmente quando você faz uma música que tem uma energia dançante. Por outro lado, ter o público sentado permite tocar certas cordas que talvez em contextos onde o público quer dançar, eles sempre querem festa… você não pode tocar então, talvez querendo encontrar um lado positivo, pudemos tocar cordas mais românticas, mais intimistas do que talvez em concertos só dançando e coisas assim… talvez podes fazer… continua sendo mais difícil, mas isso é ver… vamos dizer que o copo está meio cheio, mas em realidade a energia do público, das danças, dos sorrisos…
Francesco: …e em relação a todos esses novos formatos de performance, por exemplo… durante o primeiro confinamento, vimos muitos músicos fazendo shows, performances, zooms, todas essas lives, esses tipos de lives, performances … e ultimamente muitos festivais usam esse formato de live streaming, dadas as restrições que existem… o que achas? Pode tornar-se um modelo de concerto, de performance?
Alberto Becucci: Bem! Digamos: a nível emocional, acredito que a demonstração… o facto de muitos músicos terem continuado a fazer concertos em streaming, mesmo autoproduzidos, por um lado é… sim! Às vezes a necessidade de fazer uns… esses chapéus virtuais, não é? Mas por outro lado também é uma necessidade de realização artística, então naturalmente o nosso trabalho precisa de um público, então nenhum músico pode ficar muito tempo sem compartilhar a sua arte, sua interpretação, então digamos… eu ouvia muitas polémicas dos que diziam: não deves oferecer o teu trabalho de graça! Mas faz parte, digamos que é inerente à arte e à comunicação, pelo menos na minha visão de arte, então muitos de nós se encontraram a transmitir, através do zoom, fazendo live em várias redes sociais, porque é inata no artista a vontade de comunicar. Esta é a explicação porque eu… digamos… sempre defendi aqueles que queriam compartilhar novas criações, coisas novas online, não me parece tão grave. Quanto ao mercado, festivais e tudo mais… obviamente é outra emoção, é outra magia, mas também é verdade que é uma forma de os artistas continuarem a sobreviver, então se um festival tem algum financiamento público e tudo, é melhor fazer shows em streaming do que cancelar, porque é uma forma de ajudar os artistas a…
Francesco: …para continuar fazendo seu trabalho, praticamente…
Alberto Becucci: …então, vamos dizer… mesmo que a magia, a emoção não seja a mesma, eles são bem-vindos… bem, se os festivais continuarem pagando os caches por shows em streaming, enfim, melhor que nada…
Francesco: …sim, perfeito! Então, com razão Alberto, a estratégia dos músicos para sobreviver a esse período é se adaptar a todas essas realidades e até mesmo a transmissão ao vivo em si é uma ferramenta para continuar, como disseste… a exercer o teu trabalho! Eu queria saber se observaste nesse período algum movimento de músicos, algum movimento social assim… de pessoas que estão… mesmo no sector artístico, reunidas para reivindicar, reivindicar alguns direitos, alguns… em relação aos governos e à política, não sei o que aconteceu na Itália, aqui por exemplo, alguns movimentos se moveram, os sindicatos…
Alberto Becucci: …sim! Certamente esta situação crítica serviu para criar uma consciência, digamos de uma classe, neste caso a classe artística, a classe dos músicos, a classe dos trabalhadores do entretenimento e na Itália por exemplo, tenho mais elementos de avaliação, tenho uma caro amigo que foi diretamente membro desse tipo de união de músicos, que foi diretamente falar com o ministro da cultura e de alguma forma houve uma oportunidade de colocar todas as cartas na mesa, de ter… admitir que até agora a categoria dos músicos sempre tentou trabalhar nas sombras, na ilegalidade entre aspas, porque o sistema legal não funcionou, ou seja, que as contribuições pagas não ofereciam realmente garantias ou vantagens, então o músico preferiu meter no bolso € 100/150 em vez de pagar e ganhar 80 e pagar 60 à ENPALS, que é a instituição italiana de segurança social. Em vez disso, por meio desses… digamos… desses auxílios legítimos, os músicos começaram a perceber a utilidade deles, digamos, da previdência social no campo artístico. Mas por exemplo na Itália os dias de trabalho necessários para essas coisas, no início eram 30… 30 dias úteis, praticamente… quase nenhum dos músicos atingiu esse requisito, mesmo os músicos…
Francesco: …agora vou fazer uma pergunta, como é possível não chegar aos 30? Se, por exemplo, tiveste trinta shows, já os alcanças…
Alberto Becucci: …eh! Mas 30 concertos, nem todos os concertos, nem todos os organizadores fazem contratos, até porque para te garantir um cachê de 1000€, teriam de pagar 2000! E, portanto, também os próprios organizadores que muitas vezes não têm grandes orçamentos à sua disposição, isso diz para o nível médio, porque talvez para grandes eventos seja um tipo completamente diferente de orçamento e disponibilidade, em suma… ninguém estava interessado no trabalho legalmente…
Francesco: …então todo o sistema precisa ser repensado um pouco?
Alberto Becucci: E esta, digamos que esta crise, precisamente uma crise que ao nível etimológico é um ponto de partida e uma oportunidade para criar uma nova tendência, a partir daqui, pode ser uma oportunidade para repensar o sistema. Por exemplo, estão agora a falar em Itália e tal como me disseste em Portugal, introduzir um sistema semelhante ao francês, para que nessa altura os artistas que tenham interesse em declarar as datas, tenham interesse em declarar os ensaios, porque se você atingir uma cota tipo de 50 concertos ou ensaios, então tens uma vida, digamos, serena para criar, para fazer o teu trabalho sem ansiedade…
Francesco: …deve ser discutida esta questão da contratação e dos contratos, dos concertos e de todo o sistema. Então esperas do sistema político que haja também, digamos, um reset e um recomeço com um sistema um pouco mais justo, um pouco mais estruturado, um pouco mais justo para músicos e artistas em geral?
Alberto Becucci: Sim! Porque no final o novo governo, porque na Itália agora dois governos vieram e se foram… recentemente… tendo tomando decisões que penalizaram extremamente o mundo do entretenimento que foi o primeiro a fechar e será o último a reabrir, eles tinham que, digamos… prestar atenção às necessidades e exigências do mundo do entretenimento e, portanto, Franceschini, o ministro da cultura, mesmo que não seja o melhor ministro… mas ele abriu uma mesa de discussão e felizmente, os músicos ou trabalhadores das artes do espetáculo que interagiram expressaram claramente quais eram as necessidades e qual era a situação e, portanto, parece, bah…! Pelo menos, estou otimista, é isso! Nesse sentido, esta crise poderia ser precisamente um ponto de partida para a mudança, uma oportunidade de mudança e espero que para toda a Europa, ou seja, pelo menos para os países em que ainda não houve esse salto, como Espanha, para Portugal….
Francesco: …muito obrigado Alberto! O teu contributo também é essencial para quem te vai ouvir aqui, em Portugal, porque é justo saber o que acontece noutros países também. Eu gostaria de encerrar a nossa entrevista, gostaria de perguntar se desde o princípio das restrições, se produziste algo ao nível artístico, como alguma música que queiras recomendar para vinculá-la a esta entrevista, então todos os que vão te ouvir… tocando e dançando em videoclipes, em palcos, ou um áudio de um disco, eu diria que já sei o que você vais responder…
Alberto Becucci: Por acaso, é verdade, produzi um disco que tenho aqui… não! Brincadeirinha, fizemos algumas pré-produções para o novo álbum do projeto Ayom, que enviarei ao Francesco para compartilhar com os ouvintes, depois uma trilha sonora para um documentário do Istituto Luce…
Francesco: …ah lindo, qual é o nome dele? O título?
Alberto Becucci: “Occhio di vetro“, ambientado no período do fascismo e, portanto, são músicas com esse tipo de atmosfera…
Francesco: …está no youtube?
Alberto Becucci: Não porque ainda está no circuito de festivais e cinema, ainda não está… eles vão transmitir na RAI, Sky Arte, na Itália, mas ainda não está no ar…
Francesco: …vai nos dar mesmo assim, na candonga, como dizemos aqui… e no Ayom, então vais nos propor algumas músicas novas do 2º disco?
Alberto Becucci: Sim! Das pré-produções que espero…
Francesco: …que podemos passar, então…
Alberto Becucci: …sim, sim!
Francesco: Então te agradeço! Alberto Becucci, conhecido como “O Mestre”, aqui nos caminhos-de-ferro do sul de Portugal, com a sua mala, muito obrigado Alberto!
Alberto Becucci: Obrigado a você!
Francesco: Foi um prazer, muito obrigado!
Aixa Figini é uma cantora, musicóloga e produtora argentina. Licenciada em Artes Musicais pela Universidad de Buenos Aires. Estudou também na Escola de Música Contemporânea de Buenos Aires. Posteriormente, interessada na gestão das artes performativas, realizou um mestrado de Gestão e Políticas Culturais na Goldsmiths University of London, no Reino Unido. Na Argentina aprendeu com mestres da voz e da interpretação como Susana Rossi e Juan Cuarlos Cuacci, e estudou percussão e cantos africanos. Vive em Lisboa onde colabora com vários músicos. Além de preparar o seu disco à solo, Aixa criou/fundou e dirige o ensemble vocal “Circular”.
Em resposta à situação de atual emergência devida à pandemia do COVID-19 e à necessidade de promover iniciativas que possam avaliar e atenuar o impacto no âmbito das artes performativas, investigar os efeitos da crise, com enfoque no sector da música, documentar as estratégias aplicadas pelos artistas nas suas atividades criativas e de performance, o Projeto Ágora convida Aixa Figini, para compreender os efeitos provocados pela crise sanitária, quer no nível individual, quer no âmbito do sector cultural em Portugal.
Francesco: Olá Aixa!
Aixa Figini: Olá Ciccio!
Francesco: Buenos dias, buongiorno!
Aixa Figini: Buongiorno!
Francesco: Obrigado por ter aceite aqui… este encontro, esta conversa… pelo Projeto Ágora, gostava que te apresentasses…
Aixa Figini: ok! Sou Aixa, sou argentina de Buenos Aires, moro em Lisboa há três anos já, um bocado mais de três anos, sou cantora, tenho aqui meu projeto pessoal de música latino americana e autorais que eu partilho com Pedro Loch, guitarrista e tenho também um ensemble vocal que se chama Circular, um ensemble vocal feminino de sete cantoras, onde fazemos improvisações
em tempo real, com um sistema de senhas desenvolvido por um argentino, o ensemble tem já dois anos…
Francesco: que se chama… o argentino?
Aixa Figini: Santiago Vasquez! Si! É uma linguagem muito desenvolvida na Argentina e tem já muitas pessoas que estão a utilizar esta linguagem para a improvisação musical e eu queria pesquisar a utilização desta linguagem especificamente para as vozes, pronto! E juntei um grupo de cantoras profissionais aqui e é há dois anos que estamos a fazer estas pesquisas!
Francesco: Que maravilha! Lindo! Gostava de saber, já que estas entrevistas são sobre digamos assim… os efeitos que teve a pandemia e as restrições etc. Completamos agora um ano ou mais já, desde o princípio das restrições, como é que elas te afetaram do ponto de vista em primeiro lugar financeiro…? Concertos, atuações ao vivo?
Aixa Figini: Pronto! 100%, não é? Como acho que para todo o mundo, não é? E muito repentinamente, assim… sem capacidade de readaptar nada no curto prazo, acho que sim! Tem sido total, depois do primeiro lockdown, depois do verão ainda foi possível fazer alguns concertos, mas tudo muito reduzido, sempre com muita incertidumbre, de se podia acontecer ou se não podia acontecer, com pouca capacidade de planificação, não é? Depois houve outro lockdown e acho que até agora segue sendo assim, um impacto super forte para a música…
Francesco: tu trabalhas só de música ao vivo? Cantora?
Aixa Figini: eu trabalho como música e trabalho também na… sou produtora e produzo com uma produtora espetáculos de música e eventos musicais e também para mim, deste jeito digamos nas minhas duas áreas grandes de trabalho, tem sido totalmente afetadas, não é? Nós tínhamos um ciclo de concertos de música do mundo aqui em Lisboa, regular, mensal que era muito bom, chama-se Inside Music, que também tem sido totalmente cancelado, foi impossível… ainda como começou a quarentena, logo logo… falamos, ah! Vamos lá fazer online e fizemos quatro concertos online com diferentes músicos aqui da cidade, foram ok! Fizemos concertos outra vez de zoom mas a medida que avançava a quarentena, cada vez tínhamos menos audiência. Eu acho que as pessoas também começam a ficar sobrecarregadas da quantidade de oferta online e a também a cansar-se, não é? A música ao vivo é “irrenplazavel”!
Francesco: Ah! Isto é muito interessante, porque exatamente estes novos formatos de performance, sobretudo online e de streaming, houve um sobre carregamento…
Aixa Figini: eu acho que tivemos um sobre carregamento de eu mesma como música, eu mesma também cansei-me de ouvir concertos online, não é? Porque acho que não… pronto! Quem queira renplazar a experiência ao vivo com um computador e pronto! Impossível, não é?
Francesco: Para muitos é uma ferramenta de divulgação e eventualmente festivais que agora não podem acontecer. Para muitos pode ser uma ferramenta de divulgação mas não chega obviamente nunca, não pode chegar ao nível de uma performance ao vivo…
Aixa Figini: …mas para mim o que é interessante é que não a mesma ferramenta, como ferramenta de divulgação acho que pode ser muito interessante, mas no momento em que tu queiras renplazar a experiência do que é a música em vivo, que traz algo muito único e queres fazer exatamente o mesmo online, nunca vais ter o mesmo resultado. Então o digital e o online é muito útil e muito bom par muitas coisas e acho que neste lockdown também tem possibilitado a muitos músicos chegar a audiências novas, organizações culturais a ter audiências novas, mas não… o concerto ao vivo é irrenplazavel, não é?
Francesco: E deste ponto de vista, quais estratégias um músico hoje pode atuar dado… dada a falta e a ausência de concertos ao vivo e o único recurso depois é… todo o mundo vai parar nestas apresentações em live streaming, não há mais estratégias… é esperar?
Aixa Figini: Pronto! Eu não sei qual estratégia, não é? Seriam alternativas, eu acho também… eu hoje estava a falar com um amigo da Argentina, que o que eu achava também estranho de isto é que o nosso, que… desde uma perspetiva das políticas digamos tipo culturais, públicas, não é? Poderiam ser incentivadas alternativas, não é? Como alternativas, fazer concertos em terraços com audiências longes, sei lá… Eu… o que eu acho é que não tem sido, não há orçamento, não há dinheiro para isto também, acho que não há suficiente interesse para isto… mas não têm sido pesquisadas todas as possibilidades como deveriam ser pesquisadas deste ponto de vista!
Francesco: Estas entrevistas têm este objetivo também, de… digamos de pensar este momento como um momento de mudança e de todos juntos pensarmos um bocadinho… isso!
Aixa Figini: Um bocadinho disto juntos, não é?
Francesco: Não só a nível exatamente, depois de… mercado de trabalho para nós, mas exatamente estratégias e sobre a questão também da relação entre sector artístico, dos músicos por exemplo neste caso e a política. Por exemplo, tu recebeste apoios aqui em Portugal, de alguma entidade?
Aixa Figini: Não! Eu não tinha recebido apoios, porque também eu entrei no circuito oficial, profissional aqui em Portugal tarde, não há três anos quando cheguei, porque eu ainda trabalho com a Inglaterra, mas acho que também as condições dos apoios são muito específicas e muito restritivas, então só permitem para algumas pessoas específicas que têm estas condições, acho que… pronto! Eu não… eu também tenho trabalhado bastante em gestão cultural e em políticas culturais e desde esta perspetiva eu acho que infelizmente, não acho que o governo português e o Ministério de Cultura têm sido muito justos com o sector. Não quero falar do sector artístico no geral, porque também não conheço tanto, mas no sector da música eu acho assim… um bocado pobre e um bocado triste o pouco reconhecimento que eu vi aqui, não é?
Francesco: Exato! Por exemplo em relação à Inglaterra, tu viveste na Inglaterra?
Aixa Figini: Sim, vivi em Inglaterra! Pronto, eu acho que os apoios são muito mais fortes, não é? É uma economia mais rica também, mas acho que inclusive não só tem a ver com isso, tem a ver com como são geridos os apoios, quais são os princípios sobre os que… que se…
Francesco: fala-se muito na Intermitência na França, na Bélgica, etc. Gostava de saber, se tu não tivesses obviamente este trabalho na Inglaterra poderias ter pensado em mudar de trabalho? Há muitas pessoas que chegaram a pensar nisto…
Aixa Figini: Pronto! sim, totalmente! E eu até pensei, eu digo como… eu tenho uns trabalhos na Inglaterra e eu até agora continuo a pensar, porque acho que este ano vai ser um ano que igual, ainda que assim as coisas comecem a abrir, ainda não de todo, eu pessoalmente a começar a pandemia estava por lançar dois ou três projetos grandes, também como produtora aqui, digamos… todos estes projetos foram assim, desapareceram! Para mim, então foi uma mudança muito grande também… claro! Sim, acho que tantos amigos, tanta gente já tem mudado ou tem feito outras coisas, não é?
Francesco: Sim! É tão precária a situação que és obrigado…
Aixa Figini: aqui e no resto do mundo também na Inglaterra também, sabes? É uma… é muito sério! E acho que não é reconhecido justamente…
Francesco: provavelmente durará… poderá durar alguns anos para recuperar, eventualmente… o que era… ou pode ser um momento de mudança para que melhore…
Aixa Figini: ou então se calhar é um momento importante de mudança, primeiro para os músicos e os artistas agirem juntos de uma maneira diferente, não é? Percebam que as necessidades são as mesmas, não é? E possam demandar coisas diferentes e também de parte de parte das instituições, para perceber onde estão os buracos mais grandes de um sector que é fundamental. Têm acontecido algumas coisas bonitas este último tempo, eu tive a sorte de ir para Argentina também, um mês e meio no meio da pandemia, a visitar a família, não é? E eu vi… e lá está um bocado mais aberto, porque era verão e aqui têm acontecido pequenos eventos com pequenos grupos de pessoas, não músicas que estão a ouvir a música ou voltar a tocar ao vivo e eu já tenho visto três pessoas assim a chorar, assim… tipo! Obrigada! Obrigada, isto faz tanta falta para todos nós, tipo… eu já tinha esquecido, não é? E pronto! Eu acho que todos estão a se esquecer um bocado isto e é perigoso… acho eu!
Francesco: E houve algum movimento de artistas ou do sector artístico que te tenha surpreendido, que tenha feito algo neste período ou que tenhas seguido… visto que estás a falar da falta de união de músicos, na realidade algumas iniciativas…
Aixa Figini: eu acho que têm havido iniciativas aqui, ah… não sei… exato… os nomes mas.. mas eu não tenho visto um sector super unido a agir fortemente, não é? Acho que…
Francesco: tem havido a União Audiovisual…
Aixa Figini: tem havido assim, a União Audiovisual que foi forte, não é? Da parte da música eu não tenho visto este muito forte… eu acho…
Francesco: estão se criando estruturas, digamos… sindicatos…
Aixa Figini: sindicatos, há um par, como se chama? Sindicatos novos e pessoas que estão tentando fazer alguma coisa, mas eu acho que… pronto! Quando eu cheguei… e já vivo aqui em Lisboa há três anos, eu achei bem engraçado que não tinha esta estrutura forte e eu acho que, pronto! Tomara que fosse esta uma desculpa para começar realmente a gerar estas estruturas, não é?
Francesco: Sim! Obrigado, eu gostava de saber… durante este período o teu trabalho criativo como é que foi? Se foi afetado profundamente, se conseguiste produzir, criar…
Aixa Figini: olha! No começo foi… sabes tipo, no começo, ok! Vais ter tempo para ficar em casa e então dizes, ah pronto! Vou ter tempo para fazer todo esto que nunca tenho tempo de fazer, não é? Então, voltei a ter umas aulas de coisas que queria, voltei a estudar alguma coisa e a tentar compor alguma coisa.
Depois uma começa a entrar numa meseta assim, onde…
Francesco: num limbo onde…
Aixa Figini: …num limbo onde não há de nada e donde também acho que a falta de… a incertidumbre faz com que as coisas começam a perder sentido: ah! Mas vou fazer isto para que? E já começa a ficar, não? como uma rotina assim tão… começas a ficar meio enjoado, não é? De ficar sempre na mesma… então acho que no começo tem sido um bocado assim mais entusiasmado e depois começou a entrar assim uma meseta total!
Francesco: Uma meseta! Eh! Fantástico, gostei…
Aixa Figini: não sei como se fala isto em português! Não é? Se fala assim?
Francesco: A metáfora é linda, gostei! Meseta é um altiplano?
Aixa Figini: É um altiplano! Começas… ah, tipo… ok tá! Tudo igual, porque é todo igual… assim! E depois eu já tinha um projeto que era gravar um disco, não é? Aqui com os músicos que tenho conhecido aqui, então acho que comecei a fazer isto no fim do ano passado, no mês de Novembro, porque também acho que o momento também é fixe para ter estes tempos, que depois se calhar um não tem… e então ai voltou a haver um momento criativo fixe e ainda estamos a terminar de gravar o disco agora!
Francesco: Que maravilha!
Aixa Figini: Sim, assim que isto foi bom!
Francesco: Assim conseguiste digamos neste período produzir o disco! Estás a produzir…
Aixa Figini: consegui! Estamos a terminar… acho que consegui isto e depois com o ensemble de vozes, tem sido diferente, não é? Porque as cantoras… as pessoas não podiam juntar-se na rua, então cantores… nós somos sete, sabes? É… e começamos a fazer todo um trabalho online e a fazer vídeos de quarentena…
Francesco: …mas fizeram aqueles vídeos de tipo zoom?
Aixa Figini: Tipo de quarentena, mas melhores produzidos, começamos a fazer umas improvisações entre nós e eu acho que isto tem desenvolvido outro aspeto de trabalho no ensemble, que foi fixe… suficiente… eu quero voltar a ensaiar ao vivo, não é? Mas acho que no momento depois da meseta, conseguimos voltar a ativar isto… não é? Acho…
Francesco: é… porque impactou em todo o mundo e deu a todos estas sensação: agora tenho tempo para! Mas ao mesmo tempo eu penso que perdendo este… digamos… este papel social, perdendo trabalho, porque não podes trabalhar… e ao mesmo tempo o papel social de músico, de poder se apresentar…
Aixa Figini: é que a arte e a cultura é essencialmente social, não é? É esta partilha, é este dar e este receber constante entre um e outro e que… acho que muitos e muitos artistas e músicos, tem tido esta sensação de falta de sentido… tipo: ah, mas então! Se eu não posso partilhar a minha arte? Se não há como partilhar com os outros? então…
Francesco: …se fica tudo no mundo digital, é só música no digital, é só concerto no digital…
Aixa Figini: Ah!É saturado! É sobre saturado!
Francesco: Exato! Muito obrigado Aixa! Vou terminar assim, as minhas perguntas e… já que estavas a falar da produção do teu disco e destes vídeos que fizeste em live streaming, se podes nós aconselhar um ou dois temas ou vídeos, alguma coisa que depois no futuro possa… possamos aqui…
Aixa Figini: …pronto! O primeiro single que vai sair do disco se chama “Pajarillo“, que é uma música que pronto, espero que quando esta entrevista esteja publicada já vai estar lá para mostrar e depois, Circular tem a “Circular” nas redes, temos lá um par de vídeos, temos um último que temos feito que chama-se “Nós: as vozes que aqui escutas”
Francesco: Perfeito! Vou procurar… e só uma ultimíssima pergunta… “Pajarillo”… porque, explica um pouco a música e do que fala… se quiseres!
Aixa Figini: “Pajarillo” fala da… é um bocado forte, fala de um momento da minha vida que foi uma mudança assim muito forte. Foi uma música inspirada num dia em que me regalaram um “quatro”, que é um instrumento venezuelano de 4 cordas, valga a redundância! E eu trouxe para aqui da Argentina e apanhei o instrumento e saiu logo esta música pois a letra tem muito a ver com… as pessoas que se foram neste… amigos que foram embora e é uma música que fala disto, um bocadinho… e que gravamos aqui com Pedro Loch, com Ciccio! E que vá e vamos ver! Vai sair pronto, assim!
Francesco: Que maravilha! Então, vai ficar ótimo com esta entrevista e com este visual que tens atrás, olha que maravilha!
Aixa Figini: De Lisboa maravilhosa!
Francesco: Estamos aqui neste maravilhoso miradouro da Nossa senhora do Monte, um pouco de ventinho…
Aixa Figini: …mas é bom!
Francesco: Estamos em Abril…
Aixa Figini: …primavera, maravilha!
Francesco: Muito obrigado Aixa!
Aixa Figini: Obrigada eu!
Francesco: Obrigado pelo contributo que vai ser muito útil para todo o mundo ouvir e criar opiniões e eventualmente sugestões para nós!
Aixa Figini: Obrigado!
Francesco: Obrigado!
Hugo Menezes é percussionista, produtor de espetáculos e eventos. Natural de Lisboa, colaborou com projetos musicais como Cool Hipnoise, Mercado Negro, Sara Tavares, Cais Sodré Funk Connection, Carlos Barretto, Bernardo Sassetti – In Loko, Tora Tora Big Band, Spaceboys, Carlos Martins, Músicas de Sol e Lua (com: Sérgio Godinho, Vitorino, Rão Kyao), Dazkarieh, Kimi Djabaté, Tumbala, Los Malditos, Suzie & The Boys, Milton Gulli. Colaborou com vários outros artistas de renome da cena nacional. Hoje vamos estar à conversa com Hugo, que além de músico, é diretor da agência Quinto Andar. Além de organizar workshops, atividades de team building, eventos, espetáculos musicais e de animação seja em Portugal que no estrangeiro, Hugo é diretor do projeto “Plastic Funk”.
Em resposta à situação de atual emergência devida à pandemia do COVID-19 e à necessidade de promover iniciativas que possam avaliar e atenuar o impacto no âmbito das artes performativas, investigar os efeitos da crise, com enfoque no sector da música, documentar as estratégias aplicadas pelos artistas nas suas atividades criativas e de performance, o Projeto Ágora convida Hugo Menezes para compreender os efeitos provocados pela crise sanitária, quer no nível individual que no âmbito do sector cultural em Portugal.
Francesco: Boa tarde Hugo Menezes!
Hugo Menezes: Alô Francesco! É um prazer!
Francesco: É um prazer! Bem-vindo aqui a estas sessões de perguntas e entrevistas para este Projeto Ágora. Queria começar por perguntar-te quem és e o que é que tu fazes, nome e profissão!
Hugo Menezes: Então, eu sou o Hugo Menezes, sou músico, percussionista e faço também agenciamento de espetáculos e produção de eventos.
Francesco: Maravilha! Queria saber, em relação à situação atual que estamos a viver no mundo das artes e da música em particular, de que maneira esta pandemia afetou a tua situação financeira, desde o início das restrições? E já agora… estamos a completar um ano, do princípio de tudo…
Hugo Menezes: …epá! As coisas de facto pararam, eu tive uma quebra portanto em 2019, isto… eu tenho uma pequena agencia que é o Quinto Andar, que faz a produção de eventos e de espetáculos, tivemos uma quebra de 97%, ok? Portanto, ficamos praticamente sem faturação durante o ano inteiro. Epá! Foi muito complicado, porque de repente começaram a cancelar uma coisa, depois outra, depois outra e já pronto! Tinha percebido que ia tudo completamente por água abaixo… epá! E felizmente, foi… consegui ter algumas poupanças para viver porque não… ao início não havia praticamente qualquer tipo de apoios, portanto não havia nenhum tipo de resposta à situação que… pronto! Que nós aconteceu e que ninguém estava à espera!
Francesco: E para fazer umas pequenas previsões, quais serão ou poderão ser os efeitos da pandemia na tua situação financeira de 2021? Iguais ou…
Hugo Menezes: …epá! É assim: eu quero ser um gajo romântico e positivo e achar que nós lentamente vamos começar a ter alguma retoma. Acho que um dos grandes efeitos, portanto a nível da cultura e dos artistas nomeadamente, é que isto vai levar algum tipo de limpeza, ou seja não vais ter tanta gente a trabalhar nas artes, há muitos artistas que… pronto! Já começaram a desistir e a arrumar outras áreas, portanto sinto isto: vamos ter menos gente a trabalhar, mas as coisas vão continuar!
Francesco: Eu queria saber se, dos apoios que existem, da assistência financeira do governo, se existem e se tu conseguiste receber algum apoio…
Hugo Menezes: …sim! Epá, eu consegui um pequeno apoio da Segurança Social, como sou sócio gerente, durante seis meses! Agora estamos aí a ver se eventualmente existe mais qualquer coisa. Epá! Mas é um apoio muito pequeno, tendo em conta que, epá… vou te dizer: são 438€, mas que eu depois tenho que pagar 220€, agora 230€ da minha mensalidade à Segurança Social. Portanto isto também não foi cessado! Ao fim e ao cabo eu acabo por devolver metade do dinheiro do apoio, que também durante seis meses… ou seja, que é um apoio um bocado invisível… é um bocado…
Francesco: …minúsculo em relação à perda? Portanto, não te consideras absolutamente satisfeito com os apoios do governo desde o início da pandemia, em relação às artes, ou no nosso caso na produção de espetáculos de música?
Hugo Menezes: Epá, não! Acho que é uma resposta muito fraquinha, de facto muito fraquinha e depois é muito complicada também a própria distribuição. Acho que se andou muito aos papéis… agora as coisas me parece que começam a ter alguma resposta, mas mesmo assim não é eficaz, não é suficiente e epá! Como sabemos há muita gente a passar… a passar mal!
Francesco: Queria saber se te ocorreu alguma vez de pensar em… ou se esta situação te obrigou a mudar de trabalho, para tentar estabilizar a tua situação financeira, ou se eventualmente estás a pensar de mudar de trabalho durante o 2021… se a situação continuar?
Hugo Menezes: Epá! Eu espero bem que não, como te disse, quero ser um romântico positivo e espero de facto que não! Mas não é nada que não me tenha passado pela cabeça a mim e a muitos de nós! Neste momento, epá! Espero mesmo, pronto! Conseguir não ter que mudar de atividade, nem que seja temporariamente, mas é uma coisa que é sempre… ainda hoje nós não sabemos de facto, quando é que vai ser esta retoma e quando é que vamos ter uma normalidade, mais ou menos, não é? A ter mesmo, pronto… trabalho e a nível financeiro… mas é sempre uma coisa que está em aberto, acho que para todos nós, não é?
Francesco: Exato! Também muitas vezes me acontece ou me aconteceu de pensar nisso, sobretudo nos primeiro momentos da primeira pandemia… do primeiro lockdown e é um pensamento que é constante, porque a situação continua a protrair-se! Eu queria saber, agora, em relação ao trabalho criativo de músico, se… e de que maneira esta pandemia afetou o teu trabalho criativo e de performance, desde o início das restrições, por exemplo, se acabaste por tocar muito menos, se tocaste, donde, quando e…?
Hugo Menezes: Claro! Epá! Comecei a tocar muito menos e depois, porque… na minha casa por exemplo, eu não posso praticar, tenho vizinhos, opa! A percussão? Aquilo faz barulho como o caraças, comecei a praticar muito menos por uma questão, epá! De não ter a possibilidade de onde praticar, estás a ver? Ou seja, fui praticando coisas mais silenciosas, isso sim! Sinto…
Francesco: …por tanto grandes limitações, exatamente… por em casa não poder…
Hugo Menezes: …epá!Sim! Em casa não podes! Não podes ir para lado nenhum…
Francesco: …Hugo é percussionista e portanto… é muito barulho para os vizinhos!
Hugo Menezes: É barulhento! Um vizinho barulhento!
Francesco: Em relação aos ensaios, houve muito pouco, ou seja reduziu-se drasticamente a atividade criativa… é isso?
Hugo Menezes: Houve pouquíssimos, aliás mesmo agora tipo, tu praticamente não te consegues encontrar para fazer ensaios, mas depois há outra questão, que é, epá! Eu vou ensaiar, ok tipo: uma música nova, depois outra música nova, mas depois aquela sensação de não ver a luz ao fundo do túnel, porque tu não sabes quando é que vais meter aquilo em prática! Confesso que muitas vezes acaba por ser desmotivante, que é uma coisa que nós temos que ultrapassar e vamos ultrapassar! Mas que é um sentimento que tu acabas por ter de… epá, porra! Que frustração, quando é que um gajo vai conseguir tocar esta treta para as pessoas, para ver as pessoas a dançar, sabes? Aquilo que sempre fizemos!
Francesco: Mas… de que maneira estas restrições poderão afetar o teu trabalho criativo ao longo de 2021, na prática: se isto continuar a ser igual… ou seja se as restrições continuarem, o trabalho criativo vai ser igualmente escasso, como no ano passado?
Hugo Menezes: Epá, sim! É assim: por um lado, tens esta parte que eu te estava a dizer, de não haver a luz ao fundo do túnel e tu te poderes desmotivar, ao mesmo tempo uma coisa que está a acontecer, aliás, o que nós estamos a fazer neste preciso momento, que é uma residência artística, está a haver cada vez mais a necessidade disto acontecer, ou seja das pessoas se deslocarem até mesmo fora do meio urbano, ir para outros espaços, estar em conjunto com os artistas com quem trabalham e estar a desenvolver ou estar a criar coisas, que eventualmente não teriam tempo para fazer se nós estivéssemos a bombar, portanto…
Francesco: …exato! Só para pontualizar, estamos neste momento numa residência artística nas Oficinas do Convento de Montemor-O-Novo e é para todos os músicos que estão aqui, um momento fantástico, digamos… de retoma das atividades de facto criativas, que era o que estávamos a comentar…
Hugo Menezes: …estamos com a Suzie & the Boys! Já agora…
Francesco: … e queria saber, por exemplo, só agora, digamos assim… em termos numéricos, em relação aos anos anteriores já que tu também és produtor… já falaste que a redução é do 80%, mas por exemplo: em 2019, no ano anterior da pandemia quanto concertos produziste, trabalho… ou quantos concertos tocaste, um número vago ou aproximativo… aproximativo, não vago!
Hugo Menezes: Epá! Entre concertos como músico e… epá, não sei! 80 talvez…
Francesco: …e em 2020?
Hugo Menezes: 2020? Epá! 2020… até Março, olha as coisas até estavam a correr bem, para ser inverno e primavera… não te sei dizer o número, mas sei que as últimas duas semanas da pandemia tive três espetáculos…. e estamos a falar de final de Abril, Março…
Francesco: …exato! E depois daquele dia em que começou tudo? Zero?
Hugo Menezes: Epá! olha: por acaso estava a tocar contigo, foi o dia 7 de Março, fizemos o nosso último espetáculo e entretanto, pá! Eu no meu caso tive mais um espetáculo até hoje! Ou seja…
Francesco: …não! Tivemos aquele da Praça da Alegria…
Hugo Menezes: …foi esse!
Francesco: Esse?
Hugo Menezes: E já lá vai um ano!
Francesco: Ótimo! Agora eu queria passar sobre… para um outro assunto e… para depois irmos para o fim da nossa entrevista e queria perceber do ponto de vista mais da performance: por exemplo, nestes concertos que fizeste depois de tudo ter começado… sobre as estratégias dos músicos, não é? Nesta situação particular, etc. Portanto, a pergunta que te queria fazer agora é: se tens alguma estratégia artística, pessoal, para lidar com esta falta de perspetivas, ou seja, uma estratégia a nível de produção por exemplo de espetáculo, se te surgiu nestes meses alguma ideia, ou uma estratégia para enfrentar o… que há de vir?
Hugo Menezes: Opa! Como sabemos, é assim: a resposta por parte… por grande parte da teia artística foi o streaming, que é uma coisa que eu pessoalmente não acho assim propriamente uma grande piada. Acho que é uma experiência, mas não deve ser… é uma experiência e uma ferramenta, mas não deve ser uma ferramenta… digamos que deva ter um peso muito grande, porque eu acho que… epá! As artes, neste caso, espetáculos e concertos: isto é para acontecer ao vivo! Percebes? E o streaming, ao fim e ao cabo, ou seja tu estás a oferecer ou a pedir doações pra fazer um live streaming pra “x” pessoas que estão a ver o teu espetáculo… epá! Raras são as vezes em que isto tem um feedback! Portanto a nível monetário que seja positivo e parece-me que de alguma forma pode desvalorizar o trabalho que estás a fazer, isto é… pronto… uma ideia minha! Portanto, eu não fui por aí, muito sinceramente não fui por aí! Estive lá em casa a fazer alguns projetos mais de… epá! De… para trabalhar com instituições, para fazer formação, portanto no meu caso fazer instituição… fazer implementação, desculpa, de orquestras de percussão locais, portanto em vários museus, em vários sítios que se possam depois juntar no futuro. Foi uma coisa que ainda não aconteceu, portanto ainda está em proposta, ou ainda está à espera de uma data em que possa acontecer, porque é sempre: epá! Sim! Vamos ver e tal e não sei o que… e depois uns dias antes da coisa….
Francesco: …vai ser adiado!
Hugo Menezes: Exatamente!
Francesco: Constantemente!
Hugo Menezes: Constantemente!
Francesco: E, por exemplo, naquele concerto que tu fizeste, exatamente comigo, depois da… do início das restrições impostas pelos sistema sanitário nacional, ou seja foi um momento em que tu sentiste… o que é que tu sentiste a tocar naquele contexto performativo, digamos assim, determinado pelas tais restrições, estávamos naquela altura na Praça da Alegria, com limites de circulação de pessoas, obrigação de mascaras, ou não…?
Hugo Menezes: Epá, sim! Na altura, obviamente é que foi com muita alegria, na Praça da Alegria… que voltamos a sair e que voltamos a subir para um palco e a tocar para as pessoas e ver pessoas a dançar, não ali naquele perímetro de segurança, em que as pessoas estavam com afastamento e máscaras e não sei o que… mas depois à volta havia pessoas que eventualmente não sei se estavam a uma distância, não sei… mas vias as pessoas a dançar… qual era a pergunta? Desculpa…
Francesco: …a pergunta era, como é que estas restrições afetam a tua própria performance? Obviamente é algo diferente…
Hugo Menezes: …epá! É muito diferente, lá está! Porque se tu estiveres a tocar para uma plateia, ou num festival ou não sei o que… e vês ali é uma grande mancha de gente, não é? De calor humano, porque nos espetáculos, tu quando estás a tocar, neste caso, tu dás e depois recebes, não é? E tem ali aquele movimento circular. Neste caso, portanto, quando tu fazes um concerto com restrições em que tens pessoas sentadas, a dois metros de distância uma de cada outra e eventualmente com o uso da máscara e depois, na questão de entrar no recinto, sair do recinto, que é toda uma cena que me parece um bocado militar, não é? Corta um bocado a onda e… tu estás a tocar e não tens este feedback, porque as pessoas, epá! Não se podem levantar, não podem dançar, não podem tipo estar a dançar com o gajo ao lado e isto de facto é bastante limitativo! No entanto, acho que de momento é o que há e devemos aproveitar e volto a dizer, epá! Que as coisas vão melhorar e que nós vamos voltar a fazer isto em massa e aos beijos e abraços a toda a gente!
Francesco: Perfeito! Grande Hugo! Eu queria também, quase para terminar, perguntar-te sobre essas novas modalidades de apresentação, por exemplo concerto em live streaming, visto que agora muitos festivais utilizaram digamos este formato e como hoje não sabemos bem como é que vai ser o mundo, quando voltará ao normal, é provável que este novo formato de apresentação, ou seja digamos… se torne um paradigma, ou seja… uma nova realidade. Só que me pergunto, como é que por exemplo… como é que serão no futuro estas novas práticas performativas e como é que o público, por exemplo, como é que os músicos sentem… se sentem em relação
a este tipo de performance e o público?
Hugo Menezes: Pois, precisamente! Ou seja, tantos os artistas como o público… opa! Vou começar por dar um caso imaginário: tu vais ver um concerto com público, não é? Tem alguma coisa que tenha a ver, tu veres este mesmo concerto em frente ao teu PC? Não tem absolutamente nada a ver, não é? Epá! Eu acredito que as coisas voltem a ser como eram e eventualmente o streaming, ao ser descoberto como ferramenta, poderá ser usado de forma paralela, mas não acredito que seja uma ferramenta que vai ser usada no futuro, com mais força e com mais peso do que isso… não! Acho que os espetáculos, são de facto para ser ao vivo e o streaming pode ser um apoio de facto, mas não mais!
Francesco: Ok perfeito! Para terminar, queria saber se esperas alguma coisa dos políticos ou da política em geral, se tens alguma sugestão para que melhore a situação dos músicos e dos artistas ou do sector cultural… ou seja… as tuas espectativas da decisões políticas?
Hugo Menezes: Sim! Epá! Eu acho que neste momento e até agora se está muito a esquecer do que são de facto os artistas e os técnicos, portanto… e os produtores, toda a gente que trabalha no mundo do espetáculo. Obviamente que temos de ver as estruturas, temos de ver as agências, as produtoras e os promotores dos festivais, obviamente que tudo isto temos de ver sempre, porque isso faz girar a economia e faz girar a economia do sector. No entanto, sinto que se está a esquecer completamente do que são as pessoas que fazem este trabalho, portanto desde a base… e são pessoas que em grande parte não estão a ser apoiada e acho que… essa é uma das coisas que deveriam fazer, precisamente para não acontecer ou para acontecer o menos possível aquilo que eu estava a dizer, que é tu de repente teres uma redução do pessoal muito grande…
Francesco: …exato, perfeito! E conheces algum movimento reivindicativo que valha a pena mencionar, por exemplo, que nesta altura tenha feito atividades, como por exemplo a União Audiovisual, ou algum outro movimento em Lisboa?
Hugo Menezes: Epá! Não de facto, não estou ligado, conheço bem a malta da União Audiovisual e acho que para mim são um grande exemplo da força que nós temos também, percebes? De… de repente, epá! Não temos ajuda… ficamos completamente com as mãos a abanar, mas mostrar que de facto é possível nós juntarmos e conseguirmos, epá! Dar uma mão uns aos outros, tirando a União Audiovisual, não estou dentro!
Francesco: Ok! Última coisa, eu queria se tu durante… a partir do momento em que houve restrições, participaste de alguma performance online, live streaming, ou alguma residências artística… por acaso esta é um exemplo!
Hugo Menezes: Pois! Não fiz nada em streaming e residência artística não! Para além desta, opa! Houve alguns encontros, portanto malta que está a querer gravar um disco, ou fazer a pré-produção de um disco, etecetera por aí fora, mas lá está: pelo menos, na minha experiência sempre foram coisas que acabaram por ser limitadas e muitas vezes não aconteceram, epá! Porque de repente, agora os casos voltaram a subir, porque não nos podemos juntar todos, porque de repente a filha do outro apanhou o bicho na escola, depois é o avô da outra, epá! Isto tem sido uma complicação muito grande, até mesmo para nos encontrar-mos, percebes?
Francesco: Ok! Então, mesmo para acabar eu queria saber se podes aconselhar-nos uma ou duas músicas onde tu tocas, para eventualmente nesta sessão de entrevista também… quem escutará poderá também ouvir-te a cantar, alguma gravação…
Hugo Menezes: …a cantar com os tambores?
Francesco: Sim! De bandas em que participaste, uma ou duas! Só para ouvir-te a tocar…
Hugo Menezes: …epá! Eu acho que os Cool Hipnoise vale sempre a pena ouvir!
Francesco: Fantástico, exato!
Hugo Menezes: Os Tora Tora Big Band também…
Francesco: …e diz lá! Manda lá duas ketas, duas musiquinhas para juntar aqui à entrevista!
Hugo Menezes: Epá! Dos Cool Hipnoise, eu gosto muito do “Sexy” , do álbum “Cool Hipnoise”!
Francesco: Foi um single?
Hugo Menezes: não foi single, não! Não foi single…
Francesco: ….e há vídeo?
Hugo Menezes: O “Sexy”? Epá! Agora apanhaste-me… acho que não há!
Francesco: Ok! Está bem! Mas encontraremos esta música “Sexy”… gostas pelo groove? pela…?
Hugo Menezes: Sim! Epá! Gosto muito pelo groove, pela memória de o ter gravado e pela subtileza, não sei! Acho que foi um bom take, gravamos praticamente todos ao mesmo tempo no Namouche e sabes quando acabas o take e ouves e dizes: wow! Está bué de colado e senti isto com este tema, ya!
Francesco: Ok, irei procurar! E Tora Tora Big Band? A mítica big band de Lisboa?
Hugo Menezes: Epá! Dos Tora Tora, assim um tema que eu goste especialmente… “Moka Man” …também foi um bom take, teve muita improvisação e muita coisa…
Francesco: …eeve a colaboração do grande…
Hugo Menezes: …do grande André Cabaço!
Francesco: André Cabaço!
Hugo Menezes: Exatamente!
Francesco: Ok Hugo! Agradeço-te imenso, obrigado pela ajuda e pelas informações!
Hugo Menezes: Eu é que te agradeço, epá! E olha: parabéns pela tua ideia e para este excelente projeto e espero que vá com a força toda!
Francesco: Obrigado!
Hugo Menezes: Grande Abraço!
Ricardo Quinteira nasceu em Angola e vive em Portugal desde criança. Formou-se no Conservatório Nacional e com professores de flamenco.
Após mais de 20 anos de trabalho com projetos ligados à música de Angola, de Cabo Verde e da América do Sul, que o levaram a tocar nos mais diversos palcos da cena mundial, Ricardo aproveitou a pausa forçada provocada pela pandemia de Covid-19 para, finalmente, iniciar a carreira em nome próprio. Lançou recentemente várias músicas que compõem o seu primeiro trabalho discográfico à solo, com nome “Pandemic Tales”. Tem colaborado em jeito de parceria com vários projectos autorais bem como integrado pontualmente bandas de suporte de artistas das mais diversas latitudes no âmbito da assim chamada World Music, tais como: Ahí Namá, Ayom, Bruno Pernadas, Catarina Santos, Chalo Correia, Coreon Du, Dazkarieh, Eneida Marta, Espírito Nativo, Jon Luz, Lucía Echagüe, Nelo Carvalho, Oquestrada, Orquestra Todos, Rob Curto, Rubi Machado, Sara Alhinho, Susana Travassos, Tété Alhinho, The Gift, Tonecas Prazeres, entre muitos outros. Atualmente colabora com diversos artistas, entre os quais Ayom, Chalo Correia e Lucía Echágue.
Em resposta à situação de atual emergência devida à pandemia do COVID-19 e à necessidade de promover iniciativas que possam avaliar e atenuar o impacto no âmbito das artes performativas, investigar os efeitos da crise, com enfoque no sector da música, documentar as estratégias aplicadas pelos artistas nas suas atividades criativas e de performance, o Projeto Ágora convida Ricardo Quinteira, para compreender os efeitos provocados pela crise sanitária, quer no nível individual, quer no âmbito do sector cultural em Portugal.
Francesco: Olá Ricardo! Estamos aqui, boa tarde, buon pomeriggio! Estamos aqui num lugar único, uma igreja de 1400 abandonada, que resistiu às intempéries, aos terramotos e estamos aqui no centro de Itália, numa região que já foi a Etruria dos etruscos! Estamos aqui em plena tournée, num day off, tenho a honra de poder te entrevistar: podes te apresentar!
Ricardo Quinteira: Alo! Muito obrigado pelo convite para participar neste ato, que antes de mais é um ato cívico, eu acho… estas entrevistas! Para quem não me conhece sou o Ricardo Quinteira, músico residente em Portugal toda a vida e é óbvio que me apresentar aqui contigo hoje nesta… neste pedaço de arqueologia, no meio de Itália, numa aldeia medieval, num dia off da nossa tournée, é algo que muitos dos nossos colegas não têm a mínima hipótese de vivenciar, nem sequer um dia de trabalho normal, quanto mais nessas condições fora da sua terra, poder viajar, etecetera, devido às condicionantes da atual situação pandémica que ainda dura há quase dois anos!
Francesco: Perfeito! Muito obrigado Ricardo! Então, vamos começar mesmo por isso, já que estamos aqui, estamos atualmente em tournée, mas muitas das nossas conversas, quando estamos num jantar ou num almoço, são… se concentram sobre esta questão da pandemia, das vacinas, do green pass, agora estamos na altura da discussão global sobre o green pass, etc. Então, vamos voltar um pouco atrás: em Março 2020 começa este filme da pandemia global e eu gostava de resumir, digamos um pouco a tua experiência enquanto músico, como é que viveste desde o princípio esta pandemia global, como é que te afetou a nível digamos emocional, pessoal e a nível profissional?
Ricardo Quinteira: No início, nos primeiros dias foi aquele susto, aquela surpresa geral, não é? Que toda a gente sentiu que se foi instalando e cada vez mais impondo-se, quase como um filme! Toda a gente estava com esta sensação que parece que estávamos a viver um filme de ficção científica. Quando se deram as primeiras restrições a nível fundamental, da imposição de ter que ficar em casa e sair apenas para os essenciais, eu lembro-me bem desta fase porque eu fiquei até contente, estava muito contente como já não estava há muito tempo a nível profissional, porque eu finalmente tive um tempo forçado onde não tinha que andar naquela correria… que nós os músicos temos que promover constantemente para poder ter trabalho, não é? Estamos sempre atrás de alguma coisa e não temos… geralmente não temos um income fixo de uma só atividade, temos… a nossa atividade é repartida por várias… vários sectores e ali eu fui forçado a parar! Então tive um tempo privilegiado para poder dedicar-me a projetos de cariz artístico pessoais, nomeadamente escrever, continuar a escrever o livro que estou a escrever há muitos anos: um livro técnico sobre guitarra e começar a pensar no meu projeto à solo, individual… algo que eu ando também a protelar há muitos anos como muitos dos nossos colegas… estamos sempre a trabalhar para alguém, em outros projetos… ou normalmente queremos de imediato, não é? De dinheiro… mas não conseguimos muitas vezes estar a abdicar tempo a um projeto que requer mais pesquisas, que requer mais laboratório, digamos assim… porque não é prático e a nossa vida, assim… não o permite! E então foi aí um mês, um mês e tal… bastante contento por estar enfiado em casa e só ir ao supermercado! Claro que esta alegria começou a murchar assim que eu comecei a ver no horizonte que o dinheiro para eu ir ao supermercado estava a acabar! E o stress instalou-se quando eu percebi que já só faltava, já só tinha dinheiro para uma semana… pronto! E a partir deste ponto, já tinha dinheiro só para uma semana! Houve ai uns meses que a coisa apertou mesmo… tive que pedir dinheiro emprestado para comer e com o passar do tempo este stress tornou-se permanente porque como sabemos, já vão lá quase dois anos, um ano e meio! Mas, vão ser dois, não é? A música e o nosso sector é muito cíclico, a atividade prolifera mais… muito mais no verão, não é? Que é quando há sol e concertos ao ar livre, as pessoas saem mais… pronto! E no fundo é isso, são dois anos… de aqui há um bocado chega o inverno, pronto! Não há música, o inverno é a época baixa, é a mais difícil… e portanto este stress tornou-se permanente, embora as coisas já tivessem melhorado um pouco, não é? Temos visto a melhorar um pouco, em relação àquela fase inicial, mas… eu sendo muito honesto e falando até com os meus mais próximos, admiti que sim! Que fiquei a sofrer de um stress permanente, uma ansiedade permanente com a qual acho que tenho lidado bem, graças a Deus! E a nossa atividade ajuda a isso, é uma atividade que é bonita, não é? Que mexe com a alma, com a música e tal, mas sim tenho que admitir que este stress ainda continua cá, permanente… não é? E é aquela questão que nos consome: como é que vai ser para a semana? Como é que vai ser de aqui a duas semanas? Como é que vou pagar isto e aquilo? Estamos constantemente nisto e isto é muito desgastante!
Francesco: E em termos, por exemplo de apoios do governo, conseguiste algum apoio que aliviou esta ansiedade, esta situação de contingência, assim… de escassez de meios para sobreviver?
Ricardo Quinteira: Eu há pouco referi que tive que pedir dinheiro emprestado para comer e também, agora posso referir que eu acedi a vários apoios, porque organizei-me e estava atento ao que se ia passando à volta, fui perguntando! A comunicação com os meus colegas e com algumas instituições… e eu recebi bastantes apoios, embora… se eu tive de pedir dinheiro para comer… é notório que estes apoios não chegaram e eu tive que pedir dinheiro para comer pelo menos três vezes, portanto… que eu acho que é uma situação já no limite… uma situação quase “indignificante”, não é? Para quem estudou, fez o seu percurso normal, é alguém… eu considero-me alguém bem sucedido na minha profissão, acho que em termos médios isto é preocupante, para quem fez um percurso dentro da sociedade minimamente dentro dos standards, dos cânones aceitáveis, não é? E depois chegar a esta situação e ver-se com estas privações, eu penso que é um sinal muito preocupante para a sociedade onde vivemos, que denota exatamente um grande desequilíbrio entre aquilo que nós prometem, ou que nós prometeram quando nós éramos crianças, que se estudássemos e fizéssemos as coisas por um certo caminho, tudo iria mais ou menos dar certo! Não quer dizer que fossemos ficar ricos, ou que não tivéssemos problemas, mas quer dizer pelo menos que tivéssemos o suficiente para viver dignamente… pronto! E acontece que chega uma pandemia e vemos que pelo menos metade da sociedade fica numa situação precária, não é? Numa situação muito complicada!
Francesco: E tendo em conta esta precariedade, agora… na nossa perspetiva… enquadrando o sector artístico, quais espectativas poderias ter por exemplo do sistema, da política, para que isto melhorasse, ou seja: nesta altura é que veio à tona esta extrema precariedade de todos os que trabalham no sector artístico…
Ricardo Quinteira: …eu esperava e continuo à espera, embora sem grandes esperanças que se realize de uma forma pacifica e sã, grandes altercações a nível social! Eu esperava que a comunicação das autoridades em todo este processo que é transversal e que acaba por afetar em toda a linha a sociedade, mas toda mesmo! Esperava que a comunicação fosse uma comunicação mais organizada, mais clara e que promovesse mais paz social e não tanta divisão social como gerou! E eu acho que esta divisão é uma divisão que acaba por ser artificial, onde as pessoas se posicionam defendendo posições éticas, portanto algo conceitual, mas no fundo… pessoas que nunca estiveram tão divididas assim… toda uma vida! Não é? Portanto, por isto que eu chamo esta divisão “artificial”, não é? Todas estas bipolarizações, quanto ao que fazer, quanto à melhor decisão a tomar, todos estes desequilíbrios e ré equilíbrios, que é: se há alguma coisa que as pessoas com quem eu debati… contigo por exemplo, com todos os meus amigos e familiares, com a minha mulher… quer dizer nós reparamos que as discussões ficam acaloradas, quer dizer, ficamos nós já num nível de stress comum! Num cenário que não fosse de pandemia e de restrições brutais como este ano vivemos, teria acontecido desta maneira… geralmente, não… quer dizer… vejo que não tem este tipo de dinâmica social, continuarmos uma discussão sobre um tema… é porque realmente este tema afetou mesmo a sociedade! Eu, por exemplo, fiquei um ano sem estar com a minha mãe e com a minha avo! Tive cinco meses sem poder estar com a minha companheira no 2020, porque ela teve que mudar de país, teve que voltar à terra dela, depois não podia voltar por causa das restrições! Quer dizer, é muita coisa… e o que eu esperava era que os governos fossem mais claros… que era na comunicação, na explicação mesmo… na questão pedagógica, quer depois ao nível da tomada de decisão, não é? Porque nós, portanto… eu acho que esta divisão da sociedade começou a ruir por aí, não é? Por falta de uma constatação de uma maior coerência nas decisões que são tomadas, porque nós vemos que certas pessoas, certos sectores da sociedade eram obrigados a não trabalhar, enquanto outros podiam trabalhar, mas nós não conseguíamos ver o que é que… claramente o que é que diferenciava estas duas profissões em termos de risco da proliferação da pandemia. Nós vimos que certas pessoas recebiam os apoios mais facilmente do que outras pessoas, por questões burocráticas absolutamente insignificantes, preenchimentos de formulários, preenchimento de requisitos, à priori… quando aquilo o requisito máximo à priori é que toda a gente tem que continuar a comer e a pagar as suas contas, quer dizer, porque estas diferenciações? Porque isto divide a sociedade! Porque enquanto nós não chegarmos ao nível de ter que pensar, como é que eu vou comprar comida para eu comer para a semana ou no final desta semana? A gente consegue relativizar mais e… agora quando nós chegamos a este ponto, o nosso nível de stress é outro e nós não conseguimos já ser tão flexíveis em direção ao outro, ver o ponto de vista do outro, porque estamos realmente já muito perto do nível de sobrevivência pura, não é? Ou pelo menos assim o sentimos, não é? Acredito que eu estou a dizer isto e isto com certeza não tem o mesmo significado para pessoas que vivem noutras partes do planeta, que não na Europa privilegiada, não é?
Francesco: E Ricardo, mesmo nestas últimas semanas, esta divisão da sociedade veio a ser provocada também por uma série de decisões governamentais e internacionais sobre a questão do Green Pass. Nós que trabalhamos por exemplo no sector artístico e neste caso músicos, estamos acostumados a tocar por grandes audiências e nesta tournée estivemos em alguns países onde as restrições eram mais “blandas” [fracas], ou menos fortes do que em outros países. Ao mesmo tempo, as decisões sobre o Green Pass e a vacinação obrigatória ou não, entre aspas, impacta na nossa própria vivência de músicos: temos que viajar, temos que trabalhar e para o fazer estamos obrigados a seguir uma certa… um certo percurso. Como é que isto impacta na tua… digamos, na tua maneira de abordar o teu trabalho e ir para… seguir para frente?
Ricardo Quinteira: Eu posso dizer que eu sou um sortudo neste aspeto, aliás nós tivemos a oportunidade de trabalhar neste projeto com o qual estamos aqui, como ponto central em Itália, curiosamente o sitio da Europa onde a pandemia explodiu e mais curiosamente, agora as coisas estão muito melhor e inclusivamente conseguimos trabalhar cá o ano passado, em 2020 demos 17 concertos! Portanto, quando vimos uma… aqui podemos constatar, por exemplo, uma diferença muito significativa em relação à organização e à gestão da pandemia, relativamente a um país que é quase ao lado do país onde nós vivemos que é Portugal, não é? Que é o segundo verão consecutivo onde nada acontece! E em Itália, onde foi que as coisas explodiram, 6 meses depois nós estávamos em Agosto a dar 17 concertos, só tivemos 3 concertos cancelados. Para além disto, o facto de termos que estar constantemente a fazer testes, hoje em dia a maior parte de nós está vacinada, eu não! Tenho que estar sempre a fazer testes, que é incomodo, não é? Um pouco chato, mas é um mal menor, comparado com o que, eu diria o 90% dos nossos colegas tem acesso… porque nem se… porque, quer dizer… já é tão difícil tocar, já é tão difícil arranjar sítios para tocar os concertos e ainda mais com esta questão de ter que testar, nós temos que viajar, estar informados de todas estas burocracias e é preciso ter algum jogo de cintura, é preciso ter algum conhecimento de como fazer as coisas não é? De como organizar… e claro! Nenhum de nós, dos músicos não têm ou não tiveram ainda a possibilidade de entregar projetos internacionais como este, portanto têm que ficar confinados ao seu país, onde aí vai ser, vai operar segundo as regras… pronto! No nosso caso, eu acho que nós somos privilegiados porque conseguimos internacionalizar a nossa atividade podendo ir para vários países, não só na Itália, tocamos já em vários países: Suíça, Alemanha, República Checa, Espanha, Itália e portanto… claro que todos os concertinhos que entrarem, contam não é? Para as contas do mês! Mas acho perfeitamente que o nível de stress é muito maior, toda a gente tem que estar com o teste, toda a gente tem que estar com as vacinas e os testes em dia, toda a gente tem que fazer esta gestão! Um stress porque, relativamente às pessoas que têm que fazer teste, não se sabe quem pode acusar um positivo e podia comprometer logo um concerto, é muita ansiedade, é muito… mas ainda assim, como eu digo… acho que somos uns privilegiados! Portanto que isto é o melhor que nós conseguimos e é bastante positivo, para estar agradecidos ao cosmos por ter conseguido trabalhar nomeadamente este ano, pronto! E é isso que está…
Francesco: …e já que tiveste esta oportunidade de poder tocar e fazer vários concertos nesta altura especial, nesta época especial, lidaste com situações de concertos com restrições e lembro que em 2020 era muito mais ainda forte a questão do isolamento entre as cadeiras, o público sentado com “mascarinhas” e este ano há situações um pouco mais livres. Queria saber como é que viveste, ou como é que isto pode ter impactado a tua própria performance, de subir num palco grande ou médio grande, e ver o público assim todo sentado, ou situações similares?
Ricardo Quinteira: Esta pandemia chegou ao corpo, ao espírito e à alma! Nós somos músicos, estamos habituados a despertar a emoção nas pessoas e a comunicar com elas, num nível que não é o nível quotidiano das nossas relações regulares, digamos assim com a sociedade… podemos encontrar realmente um público quase… um público que está claramente doente, não é? Doente no sentido que o seu comportamento social é todo ele muito contido numa primeira fase, quase assustado, quase incrédulo, frio! Mas depois claro há o… notei em vários concertos, temos de ver como é que a música, a arte, a música… podia descongelar um bocadinho estas emoções e claro! Os agradecimentos no final dos concertos são muito mais sentidos, nós já recebemos inúmeras vezes esta abordagem de pessoas, ainda este ano recebemos várias vezes… foi o primeiro concerto que eu vi desde o início da pandemia e as pessoas quase, epá! Coradas! Rosadas e outras quase a chorar… quer dizer, é realmente, é realmente tocante, não é? Para nós é bom ouvir, porque nós contribuímos para algo bom mas ao mesmo tempo é sei lá? Uma declaração cósmica, quase um sinal de que algo está profundamente… algo está profundamente contra natura nesta forma nova de nós vivermos e que parece estar a querer impor-se como norma! Quer dizer… é incrível como no auge da nossa civilização, no auge da nossa sabedoria, no auge da nossa evolução de milhares de anos, o melhor que nós atingimos ou que quer dizer… a nova normalidade seja esta! Que dizer? É completamente… é um desafio! Parece que estamos, não é? A andar para trás é um desafio tremendo e eu acho espiritualmente, falando assim… eu acho que é muito interessante de observar e tentar perceber como é que nós vamos sair disto, mais fortes! Que eu sou um otimista! Já estou… eu acredito que sempre tudo vem para melhorar, às vezes acontecem estas baixas civilizacionais mas é sempre para nós depois integrarmos mais consciência do cosmos e de tudo à nossa volta e eu acho que essa… toda esta situação, pôs toda a gente a pensar e ainda é, estamos a pensar em muitas questões, que se calhar ninguém tinha pensado antes! Também por esta razão, eu e pela urgência da situação, já agora… refiro que nesta pandemia tive a oportunidade de, quer dizer… de começar a lançar o meu trabalho à solo que foi um trabalho que eu estava a adiar, adiar, adiar… mas quer dizer… com toda esta urgência, toda esta nova vida estranha que nós começamos a viver, levou-me a pensar que sim! Se eu.. eu tive tantas oportunidades de começar a fazer um trabalho, mas não começava porque, se calhar às vezes com uma certa procrastinação… eu depois mais à frente vou ter um momento ideal… e aqui esta pandemia foi mesmo, quer dizer… a carta branca! Foi mesmo o sinal claro que era para começar já, e fiz… estou a lançar um trabalho que tinha de ser dedicado ao ano de 2020, que é um trabalho que eu chamei de “Pandemic Tales“, histórias e contos da pandemia, contos pandémicos onde no fundo exploro o sentimento humano em todo o seu espectro. Comecei, nos primeiros temas que lancei por um lado talvez mais obscuro, mais negro… no que… devido ao vazio espiritual que eu acho que a nossa sociedade ainda goza bastante, de um vazio espiritual… e pronto! Estou a fazer um caminho, mas que foi natural, eu não planifiquei mas na seleção dos temas eu estou a fazer um caminho, eu estou a dizer um caminho porque estou a lançar um tema de cada vez! Um caminho das trevas para a luz, para deixar uma mensagem, para acabar com uma mensagem de luz e positiva! Não gostaria de adiantar mais pormenores, porque eu acho que o trabalho depois fala por si, porque é vídeo e pronto! Mas realmente senti esta necessidade de o fazer, claro sem qualquer income, não é? É uma coisa que completamente eu estou a oferecer ao mundo e penso que vale que eu chegue a ir ao palco com estes trabalhos, porque aquilo é um reflexo exatamente daquilo que nós vivemos, é que foi um produto para ser consumido em casa confinado! Tem um vídeo para as pessoas verem e por isto tem também uma vertente audiovisual, a parte do vídeo que é bastante forte, digamos assim!
Francesco: E podes comentar duas ou três ou todos os quatro vídeos que produziste, de maneira que nós depois podemos colocar aqui e linkar a esta entrevista para todo o mundo ouvir a tua música?
Ricardo Quinteira: Os vídeos? Há um primeiro que é mesmo uma declaração espiritual a um político, é uma tentativa de… a partir de um plano espiritual comunicar com as pessoas num plano político, ou seja: é quase uma tentativa de comunicar numa língua, com alguém que fala outra língua, não é? E… mas mesmo assim… há humanos de um lado e humanos do outro, portanto há uma esperança de que a comunicação vai acontecer!
Francesco: Como é que se chama esta?
Ricardo Quinteira: Esta é justamente o“Emergency State”!
Francesco: E a segunda?
Ricardo Quinteira: A segunda, o segundo tema chama-se “Bebê” o segundo tema que eu lancei é o “Bebê”, onde eu estou a falar com os bebês que estão a nascer sobre aquilo que poderão encontra aqui quando chegarem e eventualmente para não se assustarem, demasiado! A terceira é um tema que é meio enigmático, que se chama “How not?” e que apela para a mensagem do… de como a união pode fazer a força! E o quarto tema que eu só lancei 4, é o… olha, esqueci-me do nome do 4º tema…
Francesco: …possível??
Ricardo Quinteira: É o “Awakening from the dream”!
Francesco: Como é que é?
Ricardo Quinteira: “Awakening for the dream”! Acordando para o sonho, que tem múltiplos sentidos! Este sonho, não é só o sonho que nós temos, literal… durante o período de sono… mas também… que eu considero que é muito significativo das nossas vidas, aliás como o senhor Freud fez o favor de nos fazer perceber, mas também o sonho quando nós estamos acordados, o sonho enquanto realização, e… mas ao mesmo tempo, confrontando isso com a realidade, pronto! Não querendo avançar aqui com factos mais concretos, para não tirar de facto a sopresa, mas esta… esta nossa relação no fundo entre o consciente e o inconsciente e como é que as duas coisas podem estar ligadas e como é que as duas coisas se podem integrar! Porque acho que no fundo aquela mensagem espiritual, que é mais o meu posicionamento artístico, não é tanto a mensagem política, é mais a mensagem espiritual, não é entretenimento também… mas sim pode conter deleite, deleite, acho que é muito importante nós termos este foco na nossa vida! Deleitarmos com a vida, aproveitarmos a vida que tem… que é uma bênção, não é? E nós temos é que ter um compromisso com a nossa… o nosso empenho, em cada vez mais entendermos as coisas de perspetivas mais abrangentes, que acho que é tudo uma questão de perspetivas! Quando nós pudermos ver de acordo com uma perspetiva mais e mais abrangente, acho que há uma relação inversamente proporcional, quanto maior a abrangência da nossa perspetiva, menor o sofrimento, eu acho! Eu acredito nisto!
Francesco: Muito obrigado Ricardo! Por esta entrevista que me concedeste aqui ao Projeto Ágora, neste lugar maravilhoso, nesta cidadezinha, digamos… vila romana, etrusca, nesta pausa no meio da nossa tournée, foi uma conversa muito produtiva, um bom contributo para o debate que esperamos abrir!
Ricardo Quinteira: Eu só tenho que dar as felicitações por esta tua iniciativa, que no fundo vejo que é mais uma consequência, mais uma dádiva de alguém que está a contribuir no fundo para esta abertura das perspetivas da comunicação entre todos nós de uma forma mais profunda e mais empenhada e acho que vai ter um valor digamos quase antropológico para o futuro, que a sociedade e especificamente a sociedade artística vai agradecer!
Francesco: Obrigado Ricardo, obrigado!
Alexandre Pinheiro é um saxofonista e professor de música, originário de Belém do Pará (Brasil). Vive há cerca de três anos em Lisboa, onde se envolveu em vários projetos musicais, entre os quais se destaca a banda de afrobeat Carapaus liderada pelo guitarrista carioca Zé Vito e o projeto Pandeiro in Jazz, liderado pelo percussionista mineiro Juninho Ibituruna, ambos os projetos sediados em Lisboa. Em resposta à situação de atual emergência devida à pandemia do COVID-19 e à necessidade de promover iniciativas que possam avaliar e atenuar o impacto no âmbito das artes performativas, investigar os efeitos da crise, com enfoque no sector da música, documentar as estratégias aplicadas pelos artistas nas suas atividades criativas e de performance, o Projeto Ágora convida Alexandre Pinheiro, para compreender os efeitos provocados pela crise sanitária, quer no nível individual, quer no âmbito do sector cultural em Portugal.
Francesco: Olá bom dia Alexandre!
Alexandre Pinheiro: Bom dia Francesco! Tudo bem?
Francesco: Tudo bem! Bem vindo aqui nestas conversas do Projeto Àgora, podes te apresentar rapidamente?
Alexandre Pinheiro: Então, eu sou Alexandre Pinheiro, sou natural… sou brasileiro não é? Natural do Estado do Pará, Belém do Pará, que fica ao norte do país, sou saxofonista, músico, não é? Saxofonista e estou a viver em Portugal há três anos e de momento estou por aqui e continuo a vida de músico!
Francesco: Muito obrigado, te convidei para conversar rapidamente sobre toda a vivência e a experiência que tiveste, pronto… desde que chegaste, entraste logo no período de Covid e quarentena e etecetera. Gostava de saber como é que foi complexivamente esta vivência em termos digamos assim de profissão, de músico fechado em casa, como é que viveste este período?
Alexandre Pinheiro: Então, este período de pandemia eu já estava a cursar um mestrado que eu fiz… fiz na primeira parte, no princípio e veio a pandemia. Então, o processo da pandemia assim, para sobreviver como um músico… a parte artística, a questão do tocar música e de fazer música, eu me foquei muito nestes materiais que eu consumo na área de estudo de algumas coisas que preciso de esclarecer e estou esclarecendo, são duvidas minhas musicais antigas. A parte profissional, no caso da renda… de onde vem a renda logo teve um abalo mas eu consegui acessar a apoios, apoios financeiros, apoios de… emergenciais, não é? Para artistas, para apoiar os artistas e para várias classes assim da sociedade, eu consegui acessar! Alguns amigos não tiveram tanta facilidade, eu não achei tão difícil! Imaginei que não conseguisse, mas consegui e também continuei dando aula!
Francesco: Online?
Alexandre Pinheiro: Passei a dar aulas online, que eu trabalhava no momento como professor de AEC nas escolas de ensino básico, professor de atividades lúdico musicais e continuei a trabalhar nisso. Musicalmente, produzi coisas com amigos, aquelas lives que tiveram, toquei em lives, lives remuneradas, lives não remuneradas, produções de amigos, assim… participar de composições que foram feitas na pandemia, neste processo de confinamento, então participei de várias produções. Consegui ter uma vida, assim… de 100% de atividade musical antes da pandemia, eu acho que consegui ficar entre 40 e 50% com a atividade ainda… a parte profissional, assim…
Francesco: …fantástico! Então conseguiste mais ou menos manter uma atividade profissional, ter apoios?
Alexandre Pinheiro: Sim! Consegui ter apoios… os apoios foram o que deram a base…
Francesco: …que apoio foi em particular?
Alexandre Pinheiro: Então, o apoio que foi oferecido pela administração pública de Portugal mesmo…
Francesco: da Segurança Social?
Alexandre Pinheiro: É! Através da Segurança Social e também se tivesse emitido recibos verdes, inclusive tinha de passar alguns recibos verdes, três assim… que eu achei que não iria conseguir, eu consegui estes apoios que duraram uns três meses!
Francesco: Ficaste satisfeito com estes apoios, ajudou bastante?
Alexandre Pinheiro: Ajudou bastante, assim! Mas… era muito duvidoso se tu irias receber no outro mês, assim… eu recebi em dois meses seguintes, não é? Depois teve um intervalo de um mês e recebi no outro mês… isso foi meio complicado!
Francesco: Ajudou bastante?
Alexandre Pinheiro: Ajudou bastante!
Francesco: Em termos de performance neste período multiplicaram-se estas plataformas de performance online, streaming… o que é que sentiste como músico nestas circunstâncias performativas? Como é que vives a questão do live streaming, que me parece um novo formato de…
Alexandre Pinheiro: ..foi curioso porque o público, não é? Assim, principalmente a arte musical, ela é uma coisa que ela é muito de próximo… de proximidade ao público! Não que só seja assim, mas… essa coisa desta vida mais de músico que trabalha em vários trabalhos, assim que está fazendo gigs e trabalhas aqui e tudo mais no seus próprios trabalhos, foi interessante saber que o público todo está em casa, entendeu? E as lives tinham audiência, assim algumas tinham: eu observava lives de outros amigos e tinham audiência porque o público estava em casa, então… foi um negócio bem novo que… foi novo e foi curioso, tempos modernos, não é?
Francesco: Tempos modernos… de adequar-se aos tempos modernos!
Alexandre Pinheiro: Isso! Exatamente!
Francesco: E nos concertos ao vivo, mesmo em salas de espetáculos etecetera, qual foi por exemplo o efeito de ver o público todo tapado, isolado e digamos com distanciamento social, as mascaras e de repente foi um pouco estranho?
Alexandre Pinheiro: É!na realidade, quando tu percebes que este assunto pandemia e processos pandémicos no mundo, eles são… lembro disso! A gente tem isso no início do século com a gripe espanhola, a última que teve! Houveram outras pandemias que ficaram isoladas, mas essa que o mundo inteiro sentiu que foi bem, não é curioso… porque infelizmente aconteceu! Mas é assim, o processo tornou tão natural assim… do cuidado com o próximo e do distanciamento e cuidados consigo mesmo, que tu em alguns momentos já começas a achar aquilo natural! Hoje em dia tu não vês as pessoas tão protegidas como antes, tu já ficas assim meio… pó! Mas aquela naturalidade, não é? Que a gente conseguiu manter com o tempo agora…
Francesco: ..de adaptação à nova realidade?
Alexandre Pinheiro: É! Então assim… hoje, essa realidade que era uma realidade entre aspas que nós vivemos, sem o uso das mascaras alguns sem o distanciamento social… que agora começa a se abrir por causa da vacinação, ainda é estranho, assim… porque a gente ficou praticamente dois anos vivendo desta forma então, o teatro com pessoas de máscara foi normal, porque se não nem tinha o teatro. E aí, eu não sei! Tipo… fiquei assim porque já estava dentro do ambiente…
Francesco: … e… quer dizer, agora estamos numa altura em que a maior parte do povo está vacinado e estamos numa altura em que vamos para um novo inverno e há novas perspetivas eventualmente de lockdowns e coisas assim: como é que vives isto? É uma espécie de insegurança e um momento um pouco assim e não sabemos muito bem o que vai ser…
Alexandre Pinheiro: …é! Isto sempre pesa muito para o artista financeiramente, não é? A questão dos apoios, teve toda a burocracia no momento, então… se tiver o… este confinamento, neste momento de inverno… que em alguns lugares assim, aqui no continente europeu o inverno é bem mais rigoroso, aqui em Portugal o inverno ele é saudável para várias práticas ainda assim, tranquilas… e a música é uma! Assim, se infelizmente tiver que acontecer e for melhor para a saúde de todos, vai ter que ser! Claro que para o músico é um pouco mais penoso, porque acabam faltando coisas básicas assim… então se não tiver um outro… uma outra alicerce, uma outra coisa… vão faltar coisas básicas e ai tem uma questão de saúde mental, também… não é?
Francesco: Exato! E então, durante os lockdowns te mantiveste sempre produtivo ou houve momentos de pequenos down?
Alexandre Pinheiro: Acho assim que não! Acho que nem tanto, porque… era o mundo todo que estava parado, então tu não te sentias… não é aquele sentimento de que… de que quando tudo estava acontecendo, de repente tu como artista… percebes que tu estás um pouco isolado assim, fazer trabalhos e tudo mais! Aí tu tens um sentimento um pouco mais forte, tu percebes que está todo o mundo na mesma situação, este sentimento de não estar fazendo… trabalhando, ele é compartilhado, não é? Então tu tem um pouco… não é um alento, tu não te sentes como a única pessoa que está passando por aquilo, tem várias situações então… essa é bué compartilhada, que aí ele é ameno… fica mais ou menos…
Francesco: …sim, sim! E… última pergunta: tiveste algumas produções durante os lockdowns, se queres aqui aconselhar nos para linkar a esta entrevista, para podermos ouvir alguma coisa…? Algum live streaming, alguma gravação de disco?
Alexandre Pinheiro: Gravei um disco de um amigo de lá de Belém do Pará, chamado Delcley Machado, o nome do disco se titula “Ensolarando” , não é? O sol “ensolarando”… que eu fui participando neste disco e eu gravei de aqui, outros músicos gravaram em outros lugares! Ele conseguiu juntar… acho que uns três músicos gravaram de lugares diferentes… é um bom disco para se escutar e tem outros discos!
Francesco: Podes aconselhar uma ou duas faixas, para…?
Alexandre Pinheiro: A faixa que eu gravei é o “Ensolarando”!
Francesco: Ensolarando? É a que dá o nome ao…
Alexandre Pinheiro: …é! A que dá o título ao disco, eu não sei exatamente o nome das outras mas tem canções também, está bem interessante, ele é um músico de música instrumental!
Francesco: E alguma live streaming?
Alexandre Pinheiro: Aqui em Portugal, fiz trabalhos com Carapaus que é uma banda que eu faço parte, aqui em Lisboa!
Francesco: Bem, estamos em Silves, mas…
Alexandre Pinheiro: É! Desculpa!
Francesco: Não, tranquilo!
Alexandre Pinheiro: Mais outra coisa que eu lembre…
Francesco: …mas Carapaus gravou alguma coisa durante o lockdown, alguma live streaming?
Alexandre Pinheiro: Sim! sim… gravamos! Gravamos! Na realidade eu acho foi mais, aqueles vídeos montados…
Francesco: …ah sim, ok!
Alexandre Pinheiro: Eu não me lembro se fizemos um, não sim… fizemos uma live streaming para a FNAC, para receber o premio FNAC, então a gente participou desta live!
Francesco: E é fácil de encontrar?
Alexandre Pinheiro: É fácil de encontrar, esta live está muito boa inclusive… é FNAC, você coloca FNAC Carapaus e ai vai estar: é uma live de 30 minutos, é bem interessante, o som está muito bom… aconselho!
Francesco: Alexandre muito obrigado por esta entrevista neste lugar lindo!
Alexandre Pinheiro: Estamos em Silves nós…
Francesco: …estamos em outono mas parece ainda…
Alexandre Pinheiro: …então olhe só! Também eu gosto de sol!
Francesco: Muito obrigado!
Alexandre Pinheiro: Obrigado!
Cláudia Loureiro é a responsável pelo Camones Bar, um espaço dedicado à promoção das artes, do encontro de culturas e à apresentação de novos projectos e novos artistas. Desenvolve uma programação de concertos de artistas residentes sobretudo em Lisboa, mas por este palco acabam por passar artistas de todo o mundo e de todos os géneros. Durante a pandemia, Cláudia organizou 13 manifestações de rua, (desde o Coreto da Graça, passando pelo Martim Moniz e até à Torre de Belém) onde pretendeu dar vida e voz ao importantíssimo papel dos músicos na humanização do nosso dia-a-dia e à sua capacidade de união e responsabilidade social na angariação de alimentos para os mais desprotegidos. Chamou-lhe Sopa da Pedra.
Francesco: Bom dia Cláudia!
Cláudia: Olá Francesco!
Francesco: Obrigado por ter aceite este convite, para conversarmos um bocadinho, queria que te apresentasses logo para começarmos este nosso encontro no Projeto Ágora!
Cláudia: Bom! O meu nome é Cláudia, trabalho com uma equipa de duas pessoas num bar, num restaurante bar [Camones Bar] que abre à noite na zona da Graça e recebemos diariamente, sempre que podemos, artistas da nossa praça. São artistas que tocam nas ruas de Lisboa, são artistas que vivem na Graça, mas que são oriundos de todos os lados do mundo, como tu! De muitos países, com muita diversidade e com muitas artes distintas e com muita riqueza, são artistas que são recebidos aqui com muito carinho e o foco do nosso trabalho é no artista, por tanto, isto não é? O nosso espaço não é um bar com música ao vivo, é um espaço de música ao vivo com um bar: é diferente!
Francesco: É muito interessante porque, exatamente… visto que o tema das várias entrevistas é os efeitos da pandemia na atividade da música no sector cultural, artístico no geral, mas neste caso dos músicos desde o princípio das restrições de Março de 2020, como é que vocês viveram isto? O impacto financeiro foi penso “devastante”?
Cláudia: O impacto financeiro foi enorme! Obviamente, não é? Porque paramos de trabalhar, mas tão grave quanto o impacto financeiro, foi o impacto… obviamente o impacto social que tudo isto tem! O impacto financeiro é muito importante, mas verdadeiramente não podemos nós focar só no impacto financeiro e desvirtuar as outras calamidades adjacentes. É gravíssimo não poder dividir a arte livremente num espaço que foi concebido para fazer isto, é gravíssimo não poder receber os artistas, é gravíssimo não poder receber as pessoas que procuram a arte, é gravíssimo não termos a oportunidade de nós libertar e de usufruir e de evoluir, com tudo o que a arte nos dá e nos permite fazer. É um exercício da alma e do coração e do espírito, que mesmo que não possa ser feito diariamente, porque há pessoas que não podem… antes da pandemia já não podiam sair todas as noites, mas enfim pelo menos é um exercício que tem de ser feito pelo menos uma vez por semana, para mantermos a nossa sanidade mental, para mantermos a nossa criatividade em marcha, para podermos evoluir como pessoas, para podermos ganhar laços com outras pessoas e tudo isso parou! O impacto financeiro é grave, mas ele é material… eventualmente de aqui há dez anos é recuperável, eventualmente…
Francesco: …dentro de quanto tempo, desculpa?
Cláudia: Eu diria 10 anos! Eu presumo e prevejo que por cada mês de encerramento, no meu caso, seja um ano de recuperação! Portanto vamos em 10 anos neste momento! Porem, os restantes impactos que isto tem em termos de evolução como pessoas, como entidades artísticas, como pessoas que fazem parte da arte… eu não sei tocar, nem cantar, mas considero que vivo da arte e para a arte, este impacto pode nunca ser recuperado! A não ser que nos esforcemos muito, a não ser que agora tentemos repor este capital perdido, duma forma muito coerente, muito consistente, muito… como uma missão, porque já perdemos muito e então temos mesmo que trabalhar para tentar no futuro recuperar isso! Não é mensurável, isto vai ser muito difícil de perceber…
Francesco: …é algo que está acontecendo, há faltas de perspetivas e novos formatos também de música ao vivo, por exemplo, muitas vezes pergunto aos músicos o que é que eles acham destes novos formatos de apresentação em streaming, como muita coisa aconteceu desde Março, muitas bandas a fazer coisas no zoom, muitos até festivais a apresentar bandas em streaming, não sei se vocês fizeram algo do género aqui…
Cláudia: …nunca!
Francesco: Nunca! E o que é que achas em relação a isto?
Cláudia: É bonito e é bom! Mas é outra coisa, não é o mesmo! Todos sabemos que é outra coisa… e que se perde neste caminho entre estar num espetáculo ao vivo, seja num festival com milhares de pessoas, seja num bar com 50 pessoas, o que se perde é a humanidade, o aspeto humano, o valor humano, as energias humanas, o contributo, o sorriso espontâneo, o trocar de olhos, a surpresa quando reconhecemos aquela música ou a vontade de cantar juntos… em streaming nada disso acontece! Já não vou falar da qualidade técnica do som, ou já não vou falar de toda a espontaneidade que se perde, do tripé que cai e toda a gente bate palmas para apoiar o artista, tudo o que torna o momento genuíno e verdadeiro, desaparece completamente no streaming! É óbvio que não podendo haver situações ao vivo, o streaming é uma das opções… nós optamos por não fazer!
Francesco: É por isto que efetivamente, faltando esta possibilidade de tocar
de exercer o nosso trabalho, não havendo lugares e não havendo concertos é que às vezes pergunto quais estratégiaspossíveis os músicos possam ter… mas o que me deixou bastante curioso, foi a vossa iniciativa da “Sopa de Pedra” que começou… parece… há quanto tempo?
Cláudia: Bom! Nós vamos, enquanto “Sopa da Pedra”, vamos na 4ª manifestação, mas estamos em manifestação desde o dia 23 de Janeiro e…
Francesco: em pleno confinamento?
Cláudia: Em pleno confinamento! E já fizemos 9 edições desta manifestação. Normalmente, aliás… sistematicamente ao fim de semana!
Francesco: E podes me contar um pouco o historial, como surgiu, qual é a ideia?
Cláudia: Foi um percurso, quando veio o segundo confinamento eu entendi que não ia parar!
Francesco: Exato! Gostava de saber um pouco do historial, como é que surgiu esta ideia, visto que nasceu e surgiu em pleno confinamento de Janeiro [2021], mas é um processo que claramente vem de…
Cláudia: claro! É um processo que vem de trás e… bom! Eu vou tentar explicar tudo, porque são tantas ideias que fluem ao mesmo tempo e, enfim! A “Sopa da Pedra” em si, surgiu já depois de termos experimentado fazer eventos aqui à porta do nosso espaço e como não foi possível as pessoas entrarem para dentro do espaço, então entraram os artistas e os artistas atuaram pela janela para as pessoas que estavam na rua, portanto uma espécie de serenata invertida e assim aconteceram as quatro primeiras edições, só com artistas, só com público e a tentar chamar a atenção para a situação calamitosa que estávamos a viver e que íamos continuar a viver. Ao mesmo tempo e sendo um bar, nós gostamos de servir comida e sabemos a importância de servir comida e a importância do momento de servir a comida, quando desejamos bom apetite, quando sabemos que as pessoas estão a satisfazer uma necessidade, ao fim e ao cabo, não é? À qual pode ser acrescido algum prazer. Neste sentido, realizamos que não podendo fazer isto normalmente, mas tendo esta necessidade de continuar a servir comida, íamos faze-lo através de uma sopa que seria oferecida a quem quisesse, a quem precisasse, neste caso. Fizemos uma primeira sopa que foi uma desgraça, porque pusemos a sopa na rua e ninguém apareceu para comer a sopa! E nós estranhamos! Achamos que as pessoas deviam querer comer sopa, ainda mais sendo feita com amor e não sendo paga… bom! E neste dia percebemos que
tínhamos que ser nós a ir ter com as pessoas que precisavam da sopa e não as pessoas da sopa a virem ter connosco e metemos a sopa num carro e procuramos pessoas que quisessem a sopa e as encontramos… e a sopa foi comida! Tínhamos trinta sopas neste dia e neste dia também perguntaram-nos quando é que voltaríamos, porque uma sopa quente à noite sabia muito bem! E nós não tínhamos nada planeado e pensámos, bom! Amanhã não conseguimos, mas depois de amanhã voltamos, de aqui a dois dias já conseguimos… e voltamos de aí a dois dias, ao mesmo sítio com a mesma quantidade de sopas, para as mesmas pessoas… e de aí a dois dias também e na semana seguinte pensámos: ok! Então, mas parece que há ali uma outra zona de Lisboa onde pode haver pessoas que querem a sopa, em vez de trinta vamos fazer sessenta e vamos lá também… e fomos! E fomos muito bem recebidos! É extraordinário, porque é um momento incrível, onde te encontras com pessoas, onde todos juntos comemos a sopa. A sopa é para eles e para as pessoas que vão fazer a distribuição que também comem a sopa onde se conversa, onde se dão abraços, onde se trocam ideias, onde às vezes também se toca música! Temos tido a oportunidade de às vezes levar um músico connosco, mas há sítios onde nós vamos e onde já há músicos a tocar junto destas pessoas chamadas “sem abrigo”, a arte tem estas coisas singelas e gentis maravilhosas! E portanto, a “Sopa da Pedra” por si, foi crescendo enquanto “Sopa da Pedra” e neste momento são 100 sopas, três vezes por noite em três sítios diferentes e satisfaz o estômago de muita gente, mas a alma continuava por satisfazer, não é? As necessidades da alma! Bom! Sopa na rua, artistas à janela: foi fácil juntar as duas coisas! A “Sopa da Pedra”, a angariação de ingredientes para podermos fazer a “Sopa da Pedra” durante três vezes por semana, precisa de almas bondosas, as almas bondosas são as que tem coração, as almas que tem coração, são as almas que são sensíveis à música! Por outro lado, estão os artistas a precisar de se manifestar e de mostrar o seu protesto, era preciso traze-los para a rua também de forma segura e legal e portanto foi uma questão de os organizar, de nós organizarmos também em termos legais e juntamos as duas coisas: a “Sopa da Pedra” precisa dos artistas para trazer almas bondosas que tragam ingredientes para a “Sopa da Pedra”, os artistas precisam manifestar-se e protestar e o seu contributo é… chamando estas almas generosas para trazerem ingredientes para a “Sopa da Pedra” e desta forma conseguimos colmatar a fome da barriga e a fome da alma! Portanto, todos precisamos um dos outros e a “Sopa da Pedra” é muito isto também! A “Sopa da Pedra” é quando tu juntas vários ingredientes e consegues fazer uma sopa muito rica! E portanto, o conceito natural e espontaneamente passou a ser esse:
cada um dá o que tem, junta-se tudo numa panela só ou num momento só e dali sai uma coisa muito mais rica e que todos podem experimentar! O que é extraordinário!
Francesco: Uma ideia fantástica! E tem vindo crescer bastante?
Cláudia: Tem vindo a crescer! A primeira vez que fizemos à porta do nosso bar [Camones Bar] tivemos dez pessoas, atualmente temos duzentas, a adesão dos artistas é incrível!
Francesco: E disseste que faziam três vezes por semana… ou uma?
Cláudia: Atenção! A distribuição da sopa na rua à noite é três vezes por semana, o evento “Sopa da Pedra” para a angariação dos ingredientes é uma vez por semana e continuará a ser… sempre!
Francesco: E tem vindo mais músicos a participar, claro… de boca em boca…
Cláudia: muitos músicos! Apareciam músicos que nem queria… às vezes fico surpreendida e grata, mas vai manifestar a sua solidariedade com a causa e com os outros artistas, temos tido artistas que na verdade por razões, enfim muito especificas conseguem ultrapassar financeiramente esta situação delicada, mas nem por isto deixam de estar solidários com a causa e com a questão dos músicos, dos seus colegas músicos que enfim… estão numa situação de
Francesco: …de precariedade absoluta!
Cláudia: De precariedade extrema, uma coisa que só vendo é que se acredita, porque é triste! Eu não tenho outra palavra!
Francesco: Sim! É o que estou… nas várias conversas informais, com pessoas assim… vejo que é uma situação generalizada e que… há vários apoios que nem sempre abrangem todas as pessoas, alguns conseguem e outros não e como está tudo parado é uma situação extremamente delicada!
Cláudia: Eu sei de artistas que durante algum tempo ainda tiveram apoios humilhantes, mas tiveram… da Segurança Social e agora já nem estes apoios estão a ser dados, acabou tudo… e agora?
Francesco: Exato! Há uns apoios que pedem uma série de CIRS e CAES ou com atividades abertas… por exemplo, eu pessoalmente mantive a atividade fechada e se soubesse… como eu muitos outros mantiveram a atividade fechada para não acumular dívidas ou mais gastos e agora que estão saindo os apoios era preciso ter a atividade aberta a partir de Janeiro 2020…
Cláudia: claro, portanto precisavas de ter gasto muito dinheiro para manter a atividade aberta para agora ir buscar dinheiro… e na dúvida, quer dizer era uma questão da pessoa ter que fazer contas antes e sendo impossível, outra opção é fechar… repara que há outra situação: e pegando agora no que tu estás a dizer, que é uma situação muito grave, mesmo para os artistas que tiveram o apoio, esses artistas tiveram que apresentar documentação, tiveram que apresentar comprovativos de entrega de IRS, comprovativo de pagamento de renda da casa, comprovativo de agregado familiar, comprovativo de contas de luz e água… ou seja: eu nem tenho palavras para isto, porque são exatamente os que ainda nem isto conseguiram ter que mais precisam de apoio. E mesmo todos aqueles que têm isto e conseguem entregar uma declaração de IRS, a renda da casa, o agregado familiar e a conta da luz, estão a expor-se duma maneira humilhante, estão a dizer: eu juro que estou pobre! Por favor ajudem-me e isto não se faz! Isto não é ser solidário! Ser solidário é dar, sem nada em troca! É dar porque a pessoa está em frente a ti a precisar, não interessa a circunstância pela qual a pessoa foi lá parar, porque há muita gente infelizmente que também não compreende muito bem o percurso de certos artistas… estás a fazer o que gostas e estás a tocar na rua porque gostas, portanto agora aguenta-te! Não trabalhaste pois não? Tu agora passas fome e é bem feito! E isto é outra coisa que nos deixa de boca aberta! Porque se for preciso esta pessoa que diz isto ou que pensa isto, à noite está num bar a ouvir a música daquele músico excelente! Não é?
Francesco: Exatamente, estou absolutamente de acordo! Eu, por acaso, também… durante um apoio, no decurso do formulário, da apresentação de um apoio, foi me pedido um comprovativo de residência e me contactaram 5/6 vezes porque nenhum deles estava bom e foi tipo várias tentativas, cartas que me chegavam em casa do seguro de saúde e nunca eram aceite até que no fim, finalmente foi em Novembro/Dezembro do ano passado, foi todo um processo longo para conseguir um apoio…
Cláudia: claro! Quando tu pensas, bem… pode ser que finalmente desta vez seja aprovado e que para semana eu consiga ter o dinheiro… vem uma carta a pedir mais um documento em vez de ir o dinheiro! E isto requer uma resistência e uma resiliência incríveis e provavelmente esgota-te no sentido que ao fim do dia já não tens forças para ensaiar, não tens forças para criar…
Francesco: o que tens, por exemplo o que eu senti… parece que sou eu agora a… sentir que muitas vezes além de não poder trabalhar, perdes até aquela noção do teu papel social, ou seja tu como artista… te perdes nestes meandros de apoios, que às vezes é humilhante…
Cláudia: …como é óbvio!
Francesco: Perdes até o teu lugar social que é de ser músico! Não há lugar para tocar e agora estás a pedir e aí é uma questão que às vezes pode impactar na moral até ao ponto de poder até às vezes… alguns, de vez em quando posso ter pensado de mudar de trabalho…
Cláudia: …bom! Mas cuidado para o que mudas, porque na realidade isto passa-se com os artistas e não só, portanto tens de mudar para uma coisa que te permita não passar por esta aflição outra vez…
Francesco: …uma agência de marketing online e 8 horas em teletrabalho…
Cláudia: …eu acho uma boa ideia, podias fazer isto, ou nas obras… também é uma boa alternativa, não é? Ou sei lá… canalizador, qualquer coisa que te tire completamente a tua criatividade e a tua dignidade de… enfim, nada contra as pessoas que são canalizadores e que trabalham nas obras, mas ver um músico incrível que precisa das suas mãos para tocar um instrumento musical a… se calhar partir os dedos porque tem que trabalhar nas obras é uma questão muito complicada!
Francesco: Estou de acordo! Voltando à questão da “Sopa na Pedra”, como é que tem sido a questão policial do… digamos do controle do…
Cláudia: a questão policial para nós tem sido extremamente fácil e pacífica, não tem… só posso dizer bem! Não temos problema nenhum, ainda não tivemos problema nenhum, também porque estamos a fazer as coisas bem feitas, ou seja, orgulho me de dizer que tudo está realmente legalizado, porque tudo isto é possível fazer à luz da lei e à luz da Constituição da República Portuguesa, com regras e com respeito e cumprindo estas regras e cumprindo essas leis, da polícia só temos tido feedback positivo e apoio… e respeito! Este contacto com a polícia não tem sido feito só por email! O contacto com a polícia, à pedido da polícia tem sido feito intensamente, semanalmente, inclusivamente já houve uma reunião para a qual fomos convidados, não fomos convocados, fomos convidados e foi uma reunião que correu muito bem, durante uma hora e meia com altas patentes da polícia, desde o comandante distrital, ao comissário, ao subcomissário, agentes da polícia de transito, sistema de informação… tudo! E a reunião foi formal, foi oficial e por isso eu posso falar dela obviamente e posso também dizer que no final da reunião a palavra que ficou na minha memória e na minha cabeça foi do comandante distrital a dizer: “não desistam!” portanto… a partir de aqui…
Francesco: …e da comunidade, digamos assim do bairro e dos vizinhos, algum feedback positivo/negativo?
Cláudia: As duas coisas! Muito polarizado, ou seja… é difícil encontrar alguém que esteja no meio, do género: ah mas!? As pessoas polarizam-se muito, ou adoram e dão muita força, ou condenam e apontam e não nos querem cá! Existem as duas fações, digamos, o que também é uma pena porque não precisa ser assim, não é? As que nós adoram, é bom que adorem e é ótimo e que compreendem, mas não precisam ficar zangados com aqueles que têm um discernimento diferente e que não compreendem a amplitude e a necessidade destas ações e que nos condenam, muitas vezes alegando razões mal fundamentadas, porque as pessoas não percebem muito bem o que nós estamos ali a fazer, não é? Acham que não é uma manifestação, eu já tenho tentado… já estou a publicar com muita assiduidade no facebook a definição de manifestação, para as pessoas perceberem melhor o que é uma manifestação e porque é que existe a palavra manifestação, que é quando as pessoas se manifestam! E estas pessoas às vezes entram em conflito umas com as outras e nós tentamos que isto não aconteça! As que nós adoram, precisamos muito do apoio delas, as que nós condenam nós olhamos com compaixão, porque são pessoas que não estão num nível de paixão em que nós já estamos e isto é muito importante, são pessoas que não percebem de amor, não percebem de abraços, não percebem de afetos, prescindiram, abdicaram, entregaram essa amplitude de alma aos governantes, a terceiros e não estão a tomar conta delas, neste sentido… permitiram que outros tomassem conta delas neste sentido e realmente nós só podemos olhar para estas pessoas com compaixão e esperar que elas enfim um dia, no coração delas, no fundo… sozinhas em casa ou durante o banho ou no momento mais… de maior contacto com a sua própria vida, possam perceber que o que está errado, não é abraçar, cantar e dançar! O que está errado é não abraçar, não cantar e não dançar e que todos precisamos de fazer isto, devemos voltar a fazer isto com respeito, com os cuidados que temos que ter, ninguém quer contagiar ninguém com nada, a não ser com amor e com esperança e com sentido de benevolência e de humanidade, é só isso!
Francesco: Fantástico! Eu também estava a comentar, antes… que tive alguma discussão com algum amigo que está confundindo este evento como uma festa, alegando que há uma falta de respeito contra, por exemplo neste caso… ele dizia, contra os adolescentes que têm que ficar em casa, ou as lojas que não podem vender ou não podem abrir e tenho tido nos últimos dias uma conversa do género, para tentar perceber o compreender o significado desta reação contra, quando… posso dizer que estou de acordo absolutamente contigo e admiro a vossa iniciativa, porque precisamos justamente de nós encontrar até na praça, cantar e respeitar as regras, mas podermos falar sobre as nossas experiências. Uma coisa que me interessava saber, era mas… tiveste provavelmente várias conversas com os músicos e o que é que destas várias conversas sentes deles, por exemplo esta necessidade de tocar, de se apresentar, de voltar a experimentar e de sentir esta energia de comunicação viva e espontânea…
Cláudia: olha Francesco! O que nós sentimos todos, enquanto “Sopa da Pedra”
é que neste momento já não somos donos da ação, os donos da ação neste momento são os músicos, são os artistas e portanto nós estaremos lá no domingo seguindo sempre o que os artistas queiram, tratamos da parte legal, a ação é das artes, não é nossa!
Francesco: E a vossa ideia é seguir para a frente e fazer?
Cláudia: Nem imaginas o que vai acontecer!
Francesco: Isto é fantástico! Estou muito contente porque é uma iniciativa que… ao qual estou aderindo como público, ver os outros cantar… outro dia cheguei e estava um menino de 9 anos a cantar e adorei!
Cláudia: É o futuro! Vivemos um pedacinho do futuro nestes momentos em que o Miguel vai cantar, sim! É espantoso!
Francesco: Uma voz cristalina! E depois eu conheço ele desde quando era bebé, porque o conheci em Olinda, no Brasil! Para terminar, gostava de perguntar-te se conheces outras iniciativas do género parecidas com a vossa da “Sopa de Pedra” que merecem tipo… uma menção especial, muitas pessoas falam da União Audiovisual e de outras iniciativas, tens alguma coisa a…
Cláudia: …eu vejo muitas necessidades, mas na verdade vejo muitas poucas iniciativas e tenho pena! Nós falamos sobre isto muitas vezes e a nossa alegria seria que houvesse sopas de pedra pelo país inteiro, sopas de pedra, caldo verde, o que tu lhe quiseres chamar, que houvesse iniciativas pelo país inteiro, pelo mundo inteiro, que as pessoas percebessem que podem e devem manifestar-se. Eu não digo que façam exatamente o que nós estamos a fazer, porque cada um é livre de fazer o que quiser, mas cada um deve fazer o que tiver que fazer. Há muitas profissões a passar este problema e é importante que as pessoas entendam que tem que se sentar e conversar e unir e manifestar e perceber o que é que têm que fazer, porque eu volto a dizer: vamos a demorar anos a recuperar o que nós está a acontecer! Não podemos continuar à espera que o que está a acontecer, continue a acontecer, porque nós somos agentes de mudança e nós temos que estar envolvidos nas mudanças e nas decisões que nós afetam e nós somos pessoas crescidas, somos pessoas que podemos e devemos decidir por nós! Há uma pandemia, há um vírus, podemos ser contagiados, as entidades competentes tentaram controlar este contágio no início da pandemia. Ao que tudo indica, não vai ser possível! Já vamos na quarta vaga, as vacinas ao que consta parece que só vão conseguir proteger as pessoas durante um ano,
as variantes do vírus são imensas, portanto parece que as coisas não estão… não é possível controlar as coisas de cima para baixo, porque as coisas acontecem independentemente das vontades e dos esforços dos governantes para controlar a pandemia. Portanto chegou o momento de aprendermos a viver com isso e isso tem de vir de cada um de nós e tem de vir de baixo. Se não aprendermos a viver com isso, se não reaprendermos a manifestarmos, se não reaprendermos a ir para à rua, se não reaprendermos a pensar, se não reaprendermos a viver com isto e se ficarmos eternamente à espera que tomem conta de nós, nós vamos continuar em casa, sem dinheiro, com fome, sem poder criar, sem poder ver os familiares, sem poder ir à escola, sem poder viver! Portanto chegou um momento muito importante e muito crucial para esta decisão ser tomada em consciência
por cada uma das pessoas, tal como um adolescente que chega aos dezoito anos e que bem ou mal, normalmente bem, se for uma pessoa boa… normalmente bem, chegou um momento deste adolescente que somos nós, ao fim de um ano de pandemia, dizermos: agora já percebi mais ou menos como é que isto funciona e vou tomar conta da coisa e claro! Temos uma aprendizagem a fazer, sempre… claro que sim, há coisas que vão correr melhor e outras pior, mas temos que fazer, temos que viver, temos que ir para a frente e realmente deixo um apelo enorme para que toda a gente, principalmente para as pessoas ligadas às artes porque têm uma responsabilidade acrescida na libertação das pessoas: pessoas ligadas às artes manifestem-se, venham para a rua com cuidado, com regras, técnicos de luz, técnicos de som, músicos, cantores, teatro, circo, ajudem! Toda a gente precisa de vocês e vocês precisam de toda a gente, está no momento de virmos para a rua e de dar o nosso contributo para uma curva de mudança que não seja a da pandemia e a do vírus, acho que chegou o momento!
Francesco: Agradeço-te imenso Cláudia! Foi um contributo fantástico, valiosíssimo…
Cláudia: …eu é que agradeço Francesco, o teu… este ingrediente que tu estás a trazer para a “Sopa da Pedra”, vai dar aqui um gostinho extraordinário, um ingrediente incrível, obrigada!
Francesco: Obrigado!
Olmo Marín é guitarrista, cantor e compositor, originário de País Basco (Espanha). Hoje reside em Lisboa, onde colabora com vários projetos musicais locais, como Sambacalao (em que atua em dueto com seu parceiro Diogo Picão). Entre as outras colaborações sugerimos a Orquestra Latinidade e Rosa Mimosa y sus Mariposas, grupo de cumbia que lançou o seu disco de estreia em 2021. Olmo colabora ainda com artistas de renome da cena nacional, como Nancy Vieira e Salvador Sobral, entre os outros.
Em resposta à situação de atual emergência devida à pandemia do COVID-19 e à necessidade de promover iniciativas que possam avaliar e atenuar o impacto no âmbito das artes performativas, investigar os efeitos da crise, com enfoque no sector da música, documentar as estratégias aplicadas pelos artistas nas suas atividades criativas e de performance, o Projeto Ágora convida Olmo Marín, para compreender os efeitos provocados pela crise sanitária, quer no nível individual, quer no âmbito do sector cultural em Portugal.
Francesco: Boa tarde grande Olmo Marín! Como estás?
Olmo Marin: Boa tarde! Tudo bem!
Francesco: Bem vindo aqui nas conversas do Projeto Ágora, num belo dia de verão, neste lugar maravilhoso, no Jardim de Tourel de Lisboa, podes te apresentar rapidamente e dizer quem és!
Olmo Marin: Boa tarde! Sou Olmo Marin, sou músico do País Basco, de Vitória em Espanha, toco guitarra e vivo em Lisboa há 5 anos e tento ser feliz com a música o melhor que se pode!
Francesco: Muito bem! Te convidei porque estou exatamente entrevistando uma série de músicos da nossa comunidade artística e não só músicos também, técnicos e outras figuras, para perceber mais ou menos como é que vivemos na nossa comunidade, neste sector esta vivência toda da pandemia desde o princípio, até hoje e ainda hoje que estamos em pleno verão de 2021, estamos com problemas… portanto, começaria por perguntar-te: como é que te afetou toda esta pandemia em termos financeiros, por exemplo?
Olmo Marin: Pois, eu cheguei de uma viagem de Cabo Verde e tinha… no fim de Fevereiro… e ia começar o ano a ganhar dinheiro para o verão, para subsistir… porque tinha gastado as poupanças e ai foi quando… pum! Chegou aquela facada
e pronto, foi muito difícil, ao começo, porque ninguém sabia nada… sobretudo economicamente… passaram um mês, dois meses e eu digo… uau! Como vou fazer? Primeiro, pelo menos conseguimos arranjar com o senhorio de pagar a metade da renda, pospor… não deixar de pagar, então pronto! Eu consegui alguma pequena ajuda da Segurança Social, da GDA que me deu algum dinheiro em compras e com uma coisa e outra, até Junho não tive nenhum concerto e aí consegui já a ir a uma pequena tournée na França e consegui uns pequenos fundos para subsistir, mas foi muito difícil!
Francesco: Ah! Conseguiste então tocar um bocadinho no verão de 2020?
Olmo Marin: Sim, em Junho fui à França, numa pequena tournée de 10 dias e já nos finais de Agosto, aqui em Lisboa comecei a ter mais uns concertos e pequenas coisas, não é? Não grandes e… com aquela sensação de que podia ir abaixo, cada coisa que marcavas podiam cancelar e aí de facto aconteceu, já em Outubro e Novembro, que… ahhhh… cancelado! Mas pronto!
Francesco: Tiveste muitos concertos cancelados neste período?
Olmo Marin: Sim, sim! Primeiro, os que já tinha em Março, não é? Quando começou tudo, para o verão… e pronto! Depois, não… para o ano, para o ano, mas muitos destes concertos nunca acabaram por acontecer, se calhar vão acontecer este ano em Setembro ou no ano que vem, mas sim! Depois tinha… tive concertos online, esta foi a grande salvação, porque o primeiro e segundo concerto em que todo o mundo estava: bora! Bora! Aí tinha aquela cena de doar, de dar dinheiro e conseguimos algum cache normal, mas além disso pouca coisa, depois já o quinto live que fizemos, não ganhamos nada, não é? Todo o mundo estava farto de…
Francesco: …já tinham esgotado… estavam fartos seja o público que se calhar os músicos, de se repropor?
Olmo Marin: Claro! Tudo, era chato para todo o mundo os concertos live…
Francesco: …daquele formato… e, por exemplo, portanto em termos de números a atividade reduziu-se drasticamente, por exemplo em 2018 ou 2019 tocavas quantas vezes por ano?
Olmo Marin: Cheguei a tocar 100 concertos, me lembro…
Francesco: 100 concertos por ano?
Olmo Marin: Ya!
Francesco: E 2020 foi?
Olmo Marin: 20… não sei! 30…
Francesco: …sim, dos que eu entrevistei és um dos que tocou até mais…
Olmo Marin: …sim?
Francesco: Sim, mas pronto! Houve também aquela parte de desconfinamento do verão de 2020 e depois… e nos períodos de pandemia que era mesmo de confinamento restrito, estiveste em casa! Como é que viveste este período, por exemplo em termos de criatividade? Conseguiste produzir alguma coisa? Estudar?
Olmo Marin: Sim! Na verdade fui muito ativo, eu nas primeiras semanas era tipo… uau! O que vai acontecer? Mas de repente eu tinha uma banda na Holanda, que são Los Limoneros, que começamos a fazer um projeto de 1 minuto, um gravava um minuto sozinho em casa e mandava para o seguinte e assim íamos montando as músicas e conseguimos fazer quase dez músicas de 1 minuto… depois tinha os projetos, sei lá gravei com os Ayom algumas músicas do disco deles, com o Edison Monteiro, para a Nancy Vieira… para o live da Nancy Vieira fizemos alguma coisa e de repente, coisas assim… de trabalho até: grava, grava! Mas em termos de criatividade tinhas tempo, não é? De repente era, ok! Vou passar cá duas horas a ver o que acontece e acontecia, estás a ver? Consegui acabar 3 ou 4 músicas…
Francesco: …fantástico! Foi produtivo em termos de criatividade… também neste último confinamento de 2021?
Olmo Marin: Não! Este foi pior, este foi… porque o primeiro pronto! Estávamos todo o mundo com medo do que ia acontecer, como ia funcionar o mundo… mas mesmo assim, ok! Estávamos saudáveis, não acontecia grande coisa… mas o inverno de 2021 e Janeiro e Fevereiro… uh! Aí foi tipo, pam! Facada e era inverno… fui-me abaixo um bocado, moralmente também… não sei, foi como
o mundo acabou de repente! E não tinha acontecido da primeira vez…
Francesco: …tiveste alguma vez a sensação ou a tentação de pensar: vou mudar de trabalho?
Olmo Marin: Sim, sim! Já no primeiro confinamento eu disse: eu vou para Espanha, volto para a minha terra, começo a fazer pão na minha aldeia e já está, ou sei lá! E muita gente ao meu redor começou outros trabalhos, não é? Online, cenas com a net ou sei lá, outros trabalhos… então quando a conta foi diminuindo, um… era para ira à rua tocar, que até já tinha feito quando cheguei cá e não tinha nada… mas não tinha turista, não tinha maneira de ganhar na rua também nada… então dar aulas, pronto sempre aquelas outras possibilidades de ganhar dinheiro com a música, mas mesmo assim estava outra possibilidade que era fazer outra coisa… mas pronto! Ainda assim, aguentei!
Francesco: Ok! E agora estamos em pleno verão 2021…
Olmo Marin: …tenho sempre esta sensação, perspetivas? Sim! Estão lá, tenho algum concerto marcado, agora parece que vai ser bom… uma tourneezinha na Alemanha não sei aonde… mas agora que estão a subir os casos outra vez e volta aquele medo não é? De…
Francesco: …e a ideia que venha um inverno, mais um inverno como este?
Olmo Marin: Uf! Vamos ver!
Francesco: Ok! Vamos ver!
Olmo Marin: Paciência!
Francesco: Pensamento positivo! Eu estava a pensar… em relação aos concertos que fizeste, por exemplo aqueles online live e como este é um formato performativo que se está um pouco impondo, o que é que tu sentiste por exemplo em tocar neste tipo de situação?
Olmo Marin: Eu não gostei nada! Ou seja, era bom ter algum concerto, sentir que tinha alguém a ouvir a minha música e eu tocar para as pessoas, mas o ritual de ir a um lugar, fazer a prova de som, ok! Jantar, esperar… de repente chega o público, sentes o alento, sentes o silêncio, sentes as pessoas num palco qualquer… é algo que esquecemos, não é? Durante um ano e tal… isso foi… eu tinha muita saudade disso… e ok! Tocas, a malta aplaude no ecrã mas não sentes o calor, não sentes a energia que para mim é o que faz de um concerto ter sentido, uma outra coisa… partilhar esta energia!
Francesco: Claro! Em relação aos concertos mesmo ao vivo? Deves ter feito na França em 2020 e outros… com o público afastado… como é que si diz, com a distância de segurança, com máscara e com restrições várias… o que é que sentiste?
Olmo Marin: Me lembro a Festa do Avante do ano passado 2020, tocamos coma banda de cumbia que tenho, Rosa Mimosa Y Sus Mariposas e tinha que? Quinhentas pessoas? Mas estavam numa área de um quilómetro, não é? Duas cadeiras aqui, duas ali, duas ali… e normalmente era esse calor, todo o mundo a dançar meio nu… e de repente era a dançar numa cadeira! Era horrível a sensação de que a música não chega, como que não chegava… eu tinha uma sensação má… pronto, não era a mesma coisa, não é?
Francesco: Sim, sim! Portanto considerando por exemplo este novo formato de performance online em streaming, que agora chegam mensagem de todo o lado de novas plataformas que querem que tu te escrevas para ter acesso ao público global, etc. E restrições e cancelamentos, concertos que não são reagendados… que tipo de estratégia tens… ou perspetivas futuras para sobreviver, resistir?
Olmo Marin: Boa pergunta! Não sei, eu vivo na esperança um bocadinho de que… não sei se vai voltar à mesma normalidade de suar juntos num palco… mas vivo com a esperança de que aconteça, de que os concertos voltem mais ou menos a ser o que eram e a música… uma coisa que percebi é que a música foi valorizada muito mais do que era antes, em termos económicos… agora todo o mundo é: ok! Tens que pagar 5€, reservar! E diz: ok, boa! Boa, fixe, vou fazer isto! Antigamente quase tudo era de graça, ou já… olha: um concerto que é 3 ou 5 €, epá! Com 3 recebes mais gente! Agora não, está quase sempre cheio… porque tem menos lugares também, mas pronto… o pessoal já percebe que a música pode ser valorizada a um nível económico, que antigamente não era tão claro!
Francesco: Isto é interessante! Mas por exemplo, sentiste que o público valoriza mais a música… e em relação por exemplo à pandemia e a tudo aquilo que aconteceu, deu para ver que a situação dos músicos e dos artistas em geral é de uma precariedade extrema?
Olmo Marin: Pois, sim!
Francesco: Portanto, se… digamos assim, a política cultural valoriza? Não valoriza? Tentou valorizar mais depois da pandemia, ou não?
Olmo Marin: Depende dos países eu acho, nós moramos cá em Lisboa em Portugal e eu tenho a sorte de que… tinha a atividade aberta e ajudaram-me… ajudaram-me da… Fomento da Cultura e de aqui e de ali e consegui sobreviver com isto também bem e agradeço muito estas ajudas! Só que claro a maioria dos músicos não tinha estas ajudas e ninguém se responsabiliza, não é? Desse mercado negro, dessa cena assim escura que acontece… tu vais tocar a um lugar, te dão o teu dinheirinho, com as entradas… és uma pessoa que estás tipo nas margens da sociedade e então acho que poderia ser uma maneira muito mais clara e muito mais ativa, um governo e uma sociedade a valorizar de uma maneira política e de uma maneira consciente a estes músicos, aos músicos que não são da super primeira linha mas que fazem parte da sociedade…
Francesco: …e que trabalham, tocam às vezes 2 ou 3 vezes por semana…
Olmo Marin: …claro! Mas ninguém… não está no sistema de alguma maneira…
Francesco: sim! Não está no sistema porque não pode exatamente… declarar que fizeram estes tipos de trabalhos… sem contar que depois cada concerto implica ensaios, preparação do repertório, trabalho…
Olmo Marin: …este trabalho que nunca se valoriza, mas que está lá!
Francesco: Ok! Portanto podemos só esperar que a política resolva esta… pelo menos, melhore a situação dos músicos?
Olmo Marin: Sim! Que sejamos visíveis para alguém, não é?
Francesco: Ok! Para concluir a nossa conversa, gostava de saber se produziste durante todo este período algum… sim! Já disseste que tocaste em live streamings, alguma produção se calhar de discos, que possamos linkar aqui a esta entrevista para os ouvintes depois ouvir a música do grande Olmo Marin…
Olmo Marin: …sim! Estamos a acabar… estivemos a acabar… a gravar o disco de Sambacalao que é o meu duo com Diogo Picão, estamos a acabar o seu disco dos originais que é o segundo disco do Diogo Picão, no qual participo e acabamos… estamos a acabar o disco de Rosa Mimosa Y Sus Mariposas…
Francesco: …ah! Que gravaram em pleno confinamento!
Olmo Marin: Em Fevereiro, mesmo confinamento duro! Que foi difícil, aconteceu uma coisa que… no primeiro dia da gravação, alguém da banda, que somos 11 deu positivo… então foi tipo… cancelado! Ninguém morreu, tudo bem, mas pronto… foi um período difícil, porque todo o mundo estava fechado, tínhamos que imprimir aquelas páginas… todo para ir a trabalhar ao estúdio…
Francesco: …ah! A autodeclararão… a auto certificação?
Olmo Marin: Sim! Foi um filme do caraças, mas conseguimos… por enquanto temos um disco a sair do forno…
Francesco: …que experiência! Nunca vais esquecer estes dias…
Olmo Marin: …foi difícil! Sim mas… é a vida, são experiências!
Francesco: E estes discos vão sair ainda em breve?
Olmo Marin: Sim, sim! Este verão acho eu…
Francesco: …ah! Já este verão? Assim será fácil… podes indicar só duas músicas assim… significativas e comentar? Assim para eu escolher depois e linkar, assim as que mais gostaste… ou as que tem mais significado para ti!
Olmo Marin: Fiz uma música muito linda durante a quarentena para uma pessoa que não conhecia muito, mas que é muito linda… chamada “Margarida” e estou a compor muitas lindas melodias instrumentais que vão sair mais à frente, se calhar com o meu projeto, no qual vou contar contigo!
Francesco: Ah que maravilha! Que boa noticia!
Olmo Marin: E sei lá, com a cumbia também estamos a fazer o nosso single que é “Rio Arriba” que também eu compus e vai sair de aqui a pouco… fizemos um grande videoclip, com Cláudio Alves!
Francesco: Portanto, em breve estão prontos e dará para linkar isso! Então, agradeço imenso pelo teu contributo Olmo, maravilhoso!
Olmo Marin: Bueno! Obrigado!
Francesco: Obrigado e…
Olmo Marin: …grande Ciccio!
Francesco: E espero que tudo corra bem para este verão 2021 e em breve também estas entrevistas serão públicas e acessíveis para o público…
Olmo Marin: …obrigado por me meter aqui contigo!
Francesco: Grazie Olmo!
Olmo Marin: Gracias até a próxima!
Pedro Loch é originário de Florianópolis (Brasil). Guitarrista e compositor, formou-se em Educação Musical na Universidade Estadual de Santa Catarina em 2012. Estudou Jazz na Morehead State University (EUA) e concluiu o Mestrado em Música na ESML (Escola Superior de Música de Lisboa). Loch fundou grupos importantes como Kiabo Instrumental. Juntou-se posteriormente às compositoras Tatiana Cobbett e Marcoliva, criando o grupo Sonora Parceria e gravando o álbum Música Súbita (2012). Loch gravou vários trabalhos, tais como os álbuns Corte Costura (2013) e Sawabona Shikoba (2015) de Tatiana Cobbett e Marcoliva. Participou ainda nos álbuns de Iara Germer e Rodrigo Piva. Trabalhou também ao lado de nomes relevantes da música brasileira, tais como Alessandro “Bebê” Kramer, Gabriel Grossi, Ricardo Herz, Amoy Ribas e Carlinhos Antunes. Hoje reside em Lisboa onde colabora com vários projetos, como Martin Sued e Orquestra Assintomática, Cristina Clara e Aixa Figini.
Em resposta à situação de atual emergência devida à pandemia do COVID-19 e à necessidade de promover iniciativas que possam avaliar e atenuar o impacto no âmbito das artes performativas, investigar os efeitos da crise, com enfoque no sector da música, documentar as estratégias aplicadas pelos artistas nas suas atividades criativas e de performance, o Projeto Ágora convida Pedro Loch, para compreender os efeitos provocados pela crise sanitária, quer no nível individual, quer no âmbito do sector cultural em Portugal.
Francesco: Boa tarde, caríssimo Pedro Loch!
Pedro Loch: Boa tarde caríssimo Francesco!
Francesco: Obrigado por ter aceite este convite e disponibilidade, para estas conversas do Projeto Ágora!
Pedro Loch: Eu agradeço que é uma honra para mim, participar…
Francesco: …estamos aqui num lugar maravilhoso, parece Lisboa, parece Nápoles, parece…
Pedro Loch: …é um dos meus lugares favoritos aqui, com certeza… da cidade!
Francesco: Olha, podes te apresentar, só para…
Pedro Loch: …sim! Eu sou Pedro Loch, sou músico, sou guitarrista ou violonista, sou do Brasil, como alguns vão perceber pelo sotaque e enfim, toco e estou bastante apaixonado pela música tradicional destes países: o samba choro, o tango, fado e flamenco e é a isto um pouco que me dedico e à composição também!
Francesco: Estás aqui em Portugal há quanto tempo?
Pedro Loch: Estou aqui há 3 anos e meio, vim fazer mestrado em jazz e acabei ficando…
Francesco: …mestrado na Superior?
Pedro Loch: Na Superior de Música de Lisboa [ESML]!
Francesco: ah que maravilha, ok! Gostava de… visto que chegaste aqui há três anos e meio e acabaste de entrar um pouco no circuito e conhecer gente e de repente depois chegou…
Pedro Loch: …o Covid!
Francesco: O Covid! Março 2020… estamos em Abril 2021… passou um ano e um mês… gostava de saber como é que viveste isto e qual foi o impacto em termos financeiros?
Pedro Loch: Para mim foi… acho que cada um seguiu um caminho e essa é uma coisa muito pessoal. Eu lembro que foi… na verdade foi em Fevereiro já… foi quando o Covid chegou na Itália muito forte e eu comecei a me interessar um pouco pelo assunto, eu vi um campeonato a ser cancelado, um campeonato de ténis. Eu assisto a campeonato de ténis e vi que tinha um campeonato de ténis que foi cancelado por causa do Covid, na época… isto ainda era Fevereiro e eu achei que… quando vi aquilo, eu pensei que não ia ter concertos por um ano!
Francesco: Sentiste logo?
Pedro Loch: Senti na hora! Falei… acho que a música vai ser muito complicado… eu acabei indo trabalhar e me dedicar à programação, na verdade! Sei trabalhar muito com programação, esta é uma adesão muito pessoal porque é uma área em que tenho facilidade e uma certa obsessão também e para mim não foi difícil trocar neste momento… não é trocar de área, eu continuei tocando! Mas eu precisava achar algum meio de me sustentar, eu tinha alguma coisa para fazer e comecei a trabalhar mais com programação. Então tive que largar a música por exemplo, largar não… na verdade, largar a música como sustento, não como paixão e como atuação, continuo tocando por aí! É uma área que escolhi fazer… esta área, porque é uma área que me dá muita liberdade de tempo de qualquer coisa e é uma área que eu pessoalmente gosto também! Então para mim está sendo uma época de muita programação na verdade! E de música também, mas de música de uma forma muito diferente, não é? E enfim… um pouco menos concertos, é claro e algumas gravações.
Francesco: Por exemplo em termos de concertos, quantos concertos fizeste em 2020?
Pedro Loch: Em 2020? Ah não contei mas obviamente foram muito menos, algumas lives, mas também poucas… e… não sei devem ter sido uns 20 ou 30 concertos, acho que não chega a isso… não sei!
Francesco: Ah! 20 ou 30, quase todos aqui na área de Lisboa? Porque festivais não havia…
Pedro Loch: …acho que sim! Acho que só fiz concertos em Lisboa, eu não toco fora de Portugal já faz mais de um ano… com certeza!
Francesco: Mais de um ano que não tocas fora de Portugal… que costumavas tocar normalmente?
Pedro Loch: Não fora de Portugal, mas fora de Lisboa sim!
Francesco: Ah ok, pelo menos Portugal continental e ilhas etc.
Pedro Loch: É sim!
Francesco: Portanto, reduziu-se bastante o número digamos… de concertos! E tiveste algum apoio no entretanto do Estado?
Pedro Loch: Não! Mas eu não busquei também, admito… eu estava… eu acabei achando uma situação de… com o trabalho que acabei inventando lá, eu acabei achando uma situação de sustentação financeira, que me deu uma tranquilidade e sinceramente achei que eu era uma daquelas pessoas que não estava realmente precisando naquela hora e eu acho que… neste caso valia mais a pena que os apoios fossem para quem tivesse… para os que estavam precisando de qualquer forma! Agora o facto de eu ir para programação, já é uma coisa muito… que já amostra a extrema fragilidade que é a nossa área, não é?
Francesco: Claro!
Pedro Loch: Foi logo a primeira reflexão que eu fiz! De como a nossa área é frágil e como é que nem vidro, não é? Teve uma pandemia e acabou, assim… se não tivesse a programação, eu não sei como é que me ia sustentar, na verdade! Foi como… achei ele ai na hora!
Francesco: E como outra pessoa que entrevistei, encontraste o trabalho em Fevereiro, um mês antes… vocês foram visionários?
Pedro Loch: É assim… eu tinha por onde cair, eu tenho uma família que trabalha com isso, então eu tinha uma certa rede, eu tenho uma certa… tinha esta certa sorte de certa forma! Eu tinha onde trabalhar, tinha tudo… claro que isso não me fez não me dedicar, eu me dediquei bastante, mas é assim como é uma área que eu gosto muito… me lembrou muito a música no começo, assim: eu estudava 10 horas por dia e foi mais ou menos o mesmo e foi uma área tranquila para mim, eu não posso reclamar! Tive muita sorte porque eu acho que muitas vezes eu nunca me tinha visto fora da música, achei que nunca iria conseguir fazer nada fora da música e acabei achando uma área que é interessante. Mas é difícil, normalmente quando alguém troca de trabalho, a gente vai fazer alguma coisa que não quer, não é? Eu tive a sorte de fazer algo que também gosto e dá dinheiro… dá um bom dinheiro tranquilo, assim… é uma área que tem muito dinheiro, eu acho!
Francesco: E em relação ao trabalho criativo? Pronto, tinhas um teletrabalho imagino que… não sei quantas horas por dia, mas conseguiste depois dedicar-te à música e vivendo esta… digamos, neste arco temporal, tivemos longos períodos de confinamento… como é que viveste a questão mais criativa? Composição, produção?
Pedro Loch: Foi um pouco difícil, mas isto é uma coisa… que eu acho que já vinha um pouco, esta dificuldade criativa. Não sei, acho que isto é muito pessoal, acho que deve ter gente na pandemia que teve muito… teve um processo criativo muito bom e teve gente que teve um bloqueio, eu acho que tive mais pelo bloqueio criativo pelo menos, mas de tocar não! Tocar… toquei bastante, compus muito menos do que costumava compor, muito menos! Não acho que foi o trabalho, porque eu tenho tempo para fazer isto também… Foi um pouco a…
Francesco: …o estímulo?
Pedro Loch: É, o estimulo… um pouco o estimulo… não poder estar tocando para as pessoas, eu acho! Acho que o facto de ficar muito isolado e não tocar muito com os outros é muito “desestimulante” para mim e acabei por compor menos por causa disto, eu acho!
Francesco: Ok! Sim, exatamente… esta impossibilidade de encontros e de ensaios…
Pedro Loch: …isto faz falta! Isto na minha opinião faz muita falta no meu caso, não é? Foi o que mais me fez falta!
Francesco: Sim porque também como músico de instrumentos e portanto membros de grupos… a nossa linfa vital e produtiva é partilhar…
Pedro Loch: …eu tenho muita dificuldade em estar sozinho, claro que já fiz isto muito na minha vida e até faço às vezes, mas ultimamente é muito mais prazeroso ir a um lugar e tocar com gente do que… compartilhar música… do que em casa sozinho às vezes é mais difícil de ter algum estimulo.
Francesco: Em relação aos concertos que fizeste, o que é que sentiste ao nível de performance em frente de… digamos assim… em situações com restrições, de distanciamento social, máscaras…?
Pedro Loch: Para mim, isto não… também nunca pensei sobre isto… não me fez tanta diferença ter que tocar, para mim não, não é? Mas eu sou guitarrista, se fosse cantora, claro! Mas se bem que não, é… mas no palco a gente não costuma usar máscara, a gente consegue ficar longe e faz o concerto….
Francesco: …o o público? Quer dizer pode ser que tenhas tocado em Lisboa em situações em que ainda não havia grandes restrições… em palcos grandes… houve festivais com cadeiras, distanciamento…
Pedro Loch: …é! Não sei… isto é muito… mesmo nos concertos é mesmo para o público, não é? Mas não sei dizer, não senti algo assim muito… claro que prefiro sem máscara, sem nada, é óbvio, não é? Mas não foi, para mim não foi algo assim tão…
Francesco: …que te deixou?
Pedro Loch: Talvez para o público é mais chato, não é? Mas a mim não, pelo menos para mim a máscara não me chateou muito!
Francesco: E agora que muitos festivais estão se propondo com programações em live streaming e os próprios músicos a partir do primeiro período de confinamento fizeram muito live streaming, tu também acho que fizeste alguns…
Pedro Loch: …fiz alguns sim!
Francesco: Parece ser um formato de performance que vai se consolidar no futuro, o que é que achas em relação a isto?
Pedro Loch: Assim a minha… eu sou muito suspeito para falar porque eu não gosto de… eu tenho muitas dificuldades com redes sociais e… então eu não vejo live, eu não gosto muito de ver… eu sou um pouco um bicho do mato nessas horas! Então para mim é muito natural achar que a live não tem futuro nenhum porque eu não assisto live… eu gosto de ver concertos ao vivo, mas live não!
Francesco: Ou seja fizeste live, mas não costumas assistir?
Pedro Loch: Não assisto, não gosto… mas assim, sou eu! Não estou tirando o mundo por mim, então… para mim é muito difícil de… para mim, se todo o mundo fosse igual a mim, estaria fadado ao fracasso! com certeza! Agora, como há pessoas muito diferentes de mim e ainda bem… eu não sei, eu acho que pode ser uma possibilidade, mas vejo muita gente reclamar dizer que não gostam… acho que é muito difícil uma live substituir um concerto ao vivo, me parece… mesmo com um som incrível… primeiro pra fazer uma live com um som incrível dá para gastar um dinheiro enorme…
Francesco: …exatamente! Este é uma questão que…
Pedro Loch: ….é uma coisa super difícil de ter, não é? Como é que sustenta uma live ao vivo assim… uma grande, como é que pagas as contas de tudo? Paga os músicos, paga os técnicos de som, paga o estúdio, não sei… a não ser que eu esteja errado, mas eu acho difícil depois de acabarem as restrições das lives continuar assim com esta força, acho eu! Os concertos ao vivo… mas, nos concertos tem uma experiência, o som vem… não sei explicar, tem a questão social, tem a questão….
Francesco: …do encontro?
Pedro Loch: …da música ao vivo, não sei… é complicado! Há coisas na música ao vivo que são boas porque são vivas, eu acho… não sei, não sei explicar… mas esta é uma minha percepção, não quero dizer… eu também realmente não tenho conhecimentos para dizer se vai para frente ou não…
Francesco: …eu como músico, me lembro que no princípio vários colegas, eu estava confinado em Nápoles… estava lá para fazer um disco e depois fiquei lá bloqueado e vários me pediram de participar em lives streamings, não é? Feitas com telefone… e aí a qualidade perde-se, mas era uma altura em que todo o mundo estava fazendo assim, então…
Pedro Loch: …claro!
Francesco: … surge esta questão!
Pedro Loch: Mas a coisa de não ter qualidade é que o pessoal faz muito… sei lá, quando posta assim no instagram, ou uma coisa curta e tal… nunca precisa de muita qualidade e muitas vezes tem um engajamento grande, não é? Isto para concertos, ou está contando uma história às vezes, sei lá faz um concerto de uma hora e mete dez minutos, as músicas tem uma ordem, uma razão de ser, uma coisa complementa a outra… acho que é muito difícil contar uma história como se conta num concerto e numa live… isto num concerto, se pensar numa live, então impossível! Não sei… todas as propostas que eu penso de concerto assim, seja um concerto em teatro, se fizeres uma coisa… seja um concerto de baile sei lá ao ar livre, ou uma música para dançar, também não vejo a live substituir, não sei, não sei dizer… acho difícil!
Francesco: Esta pergunta liga-se a uma questão, ou seja… numa altura em que não sabemos ainda… os confinamentos se vão continuar ou não, se vai haver uma fase 3, uma fase 4, variante X ou Y… eu faço esta pergunta para que? Para perceber mais ou menos quais as estratégias que o músico pode ter para continuar a fazer o seu trabalho, se é o live streaming o formato possível ou
se poderá haver outros formatos, é só por isto que…
Pedro Loch: …olha, é uma boa pergunta!
Francesco: Estratégias, é… difícil como pergunta…
Pedro Loch: …é! Acho difícil, claro que há muitas coisas por fazer, provavelmente muita coisa que a gente ainda não imaginou… mas com certeza é difícil, claro que… eu me vi neste momento, eu não sabia muito para onde ir e acabei fazendo outra coisa!
Francesco: Claro!
Pedro Loch: Mas não sei, talvez a live seja uma opção, os apoios acho que são indispensáveis porque não se pode trabalhar… de certa forma, como sempre se trabalhou! Ou se tem um dinheiro guardado e se investe em gravações, talvez possa ser um bom momento para…
Francesco: …gravações de discos?
Pedro Loch: É! Pode ser um bom momento para produzir, para depois poder colher os frutos, não é? Se não… não sei muito o que se pode fazer, tem aulas online, que muita gente dá ainda… mas acho que trabalhar com música, bom sempre foi…
Francesco: …difícil! Agora ainda mais…
Pedro Loch: … dificílimo, enfim! É difícil mas é bom… é por isto é uma coisa… a paixão pela arte, faz as coisas difíceis serem coisas interessantes, não é? Mas, não sei muito como… eu acabei trocando de área porque eu nunca… não sabia o que fazer em um ano, se não tivesse concertos em um ano eu não saberia como viver e como pagar as contas!
Francesco: E… concluindo se esta precariedade do sector artístico em particular, aqui estamos a falar da música e dos músicos, quais espectativas terias por exemplo do mundo político e não digo só em Portugal como a nível, não sei… no Brasil ou… poderia ser visto este como um momento de mudança ou um reset… ou recomeçar com um novo…
Pedro Loch: …sim! Acho que sim! Claro que é muito fácil apontar o dedo, para mim é muito fácil de… está errado? Tal? Eu acho que a pandemia expos muito esta fragilidade toda, então… acho que alguma coisa tem de mudar… é claro que as propostas são sempre difíceis! Então vamos mudar o que, não é? Mas acho que está constatada a enorme fragilidade do sector cultural, no Brasil é também assim… acho que no Brasil é até mais… e aqui é muito… e não sei, é preciso talvez ter uma organização melhor entre os artistas, os músicos… entre os artistas, porque os artistas tem os mesmos problemas, não é?
Francesco: Uma união mais forte?
Pedro Loch: É! Isto é uma coisa que a gente sempre fala e pouco faz… porque há muitas organizações que acabaram sobrevivendo por isso, a área tem pelo menos uma organização que sustente… eu acho que talvez seria… é uma das poucas soluções que me vem na cabeça e que também possa ter força política, não é? Porque sem união é muito difícil ter força política e… porque no fundo todo o mundo quer o seu, não é? Os músicos, os artistas, os enfermeiros, os… todo o mundo quer a sua parte…
Francesco: …sim mas sem representatividade e sem união não se chega a lado nenhum…
Pedro Loch: …sim! Acabando ficar invisível e isto é muito complicado!
Francesco: Ótimo! Muito obrigado Pedro, por este contributo, te pergunto… te faço uma ultimíssima pergunta para acabar… eventualmente, se podes aconselhar-nos uma música ou duas para ligar a esta entrevista, para quem depois vai ouvir pode ouvir-te também a tocar guitarra…
Pedro Loch: …ah claro!
Francesco: Tu produziste a partir?
Pedro Loch: A pandemia foi um tempo de muita gravação, pelo menos! Não posso reclamar disso, não tiveram muitos concertos mas pelo menos gravei, trabalhei nisso… então vou… pode ser uma, como eu sou compositor, pode ser uma composição que eu gravei com Aixa Figini e Ciccio e Diogo Picão, se chama “Viento”…
Francesco: …estava lá!
Pedro Loch: E enfim, acho que esta música é bonita e foi gravada durante a pandemia e fala sobre a… olha, é interessante… eu acho que o poema do “Viento” fala muito sobre… como diz a Aixa, a nossa insignificância perante o tamanho da natureza… e eu acho que é um pouco isso!
Francesco: Fantástico!
Pedro Loch: E é um poema super bonito e imagético, então pode ser “Viento”!
Francesco: Que vai sair em breve, portanto…
Pedro Loch: …vai sair em breve, é um trabalho meu e da Aixa e está… vamos ver como está ficando… em breve sai e quem quiser ouvir, espero que gostem!
Francesco: E tens uma segunda?
Pedro Loch: uma segunda…
Francesco: …já que gravaste muita coisa…
Pedro Loch: …e agora? Ah pode ser também o trabalho com Martin [Sued] também… que fizemos e… não sei, pode ser “Filas” talvez, que é um trabalho… este trabalho foi de Martin Sued, grande bandoneonista que me chamou e tive a felicidade de ele me chamar na verdade e é um septeto incrível e gravamos recentemente, espero que dê muitos frutos! Um trabalho com músicos talentosíssimos e enfim… eu me sinto honrado de fazer parte, é sempre um prazer! E pode ser uma destas músicas que gravamos recentemente…
Francesco: “Filas”!
Pedro Loch: “Filas” é boa! É uma boa!
Francesco: ok! Muito obrigado, gracias Pedro Loch!
Obrigado!
Francesco: Mais uma vez! Com passarinho a cumprimentar, obrigadíssimo!
Pedro Loch: Obrigado, obrigado! Tudo de bom!