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01.06.2022

Projeto Ágora: Entrevista com João Cabrita (05/07/2021)

Radio Olisipo · PROJETO ÁGORA: JOÃO CABRITA

João Cabrita é músico/produtor. Conta com uma extensa discografia. Fez parte de grupos como SitiadosKussondulola, Despe e Siga, os Assessores (banda que acompanha Sérgio Godinho), Cacique ’97, Virgem SutaDead Combo, entre outros. Colabora com Susana Félix, Zeca Baleiro, Caetano Veloso, Rui Veloso, Vitorino, Martinho da Vila, Cool Hipnoise, Paulo de Carvalho, Jorge Palma, Orelha Negra, D.A.M.A., X- Wife, Selma Uamusse, entre outros. Mais recentemente tem colaborado com The Legendary Tigerman e Cais Sodré Funk Connection. Trabalha para teatro, publicidade, televisão e cinema como músico e/ou diretor musical.  Em 2020 lançou “Cabrita”, o seu álbum de estreia à solo, com várias colaborações. Em resposta à situação de atual emergência devida à pandemia do COVID-19 e à necessidade de promover iniciativas que possam avaliar e atenuar o impacto no âmbito das artes performativas, investigar os efeitos da crise, com enfoque no sector da música, documentar as estratégias aplicadas pelos artistas nas suas atividades criativas e de performance, o Projeto Ágora convida João Cabrita, para compreender os efeitos provocados pela crise sanitária, quer no nível individual, quer no âmbito do sector cultural em Portugal.

João Cabrita: Olá eu sou o Cabrita, saxofonista e lancei o meu primeiro disco agora em 2020!

Francesco: Olá Cabrita, obrigado por ter aceite esta proposta de encontro e entrevista, estamos em Julho 2021. Há um mês e meio atrás parecia ter tudo quase acabado ou quase a abrir e a desconfinar… e estamos agora em pleno verão ainda com os mesmos problemas. Então vou te fazer uma série de perguntas sobre a vivência assim… de nós os músicos e artistas no geral na altura da pandemia e queria saber em primeiro lugar: como ela te afetou a nível financeiro?

João Cabrita: Foi um grande golpe, eu tinha… quando nós chegamos em Março, eu tinha à volta de 40 espetáculos marcados e desapareceram todos! Portanto, fiquei fechado em casa nesta altura estava basicamente a recuperar do inverno e acabei por não ter receitas quase nenhumas. Tive algumas… felizmente como sou compositor, tive alguns apoios da SPA e da GDA e foi basicamente isto que me safou neste trimestre e só não foi pior porque a minha mulher não trabalha nas artes e então continua a trabalhar e a receber dinheiro regularmente…

Francesco: …e destes 40 concertos por exemplo, conseguiste recuperar algum? Ou ser pago por algum, ou um adiamento…

João Cabrita: …não! Houve adiamentos e deles todos houve um que já foi feito, entretanto este ano, que foi o dos Funk Connection em Almada, houve um privado que nós pagaram metade mas depois nunca mais nós marcaram a outra data e os outros todos estão assim num limbo de, há de ser feito um dia, mas não sabemos!

Francesco: Quando voltaremos a uma vida normal… não, exato! Será reagendado quando um dia… portanto, ou seja houve um corte total de número de concertos, se num ano normal tu tocavas 50/80/100 datas…

João Cabrita: …sim! Normalmente faço por ai 120… 140 datas por ano e no ano passado, apesar de tudo… ao contrário da maior parte dos meus colegas, ainda acabei por tocar bastante no verão, ou seja fiz por aí uns 30/40 espetáculos no máximo, o ano todo… do princípio ao fim, antes do primeiro confinamento, durante o verão e até Outubro, devo ter feito por aí 30 concertos!

Francesco: Ah! Conseguiste ainda tocar um bocadinho…

João Cabrita: …ainda toquei umas coisas, sim, sim! Principalmente com o The Legendary Tiger Man, conseguimos ainda espetáculos… One Man Band e coisas assim…

Francesco: …fantástico! Tenho entrevistado pessoas que tiveram um corte total, quase de 95% das datas, o que é incrível…

João Cabrita: …sim, sim! É horrível!

Francesco: E conseguiste então nesta altura algum apoio para te sustentar?

João Cabrita: Tive dois “apoiozitos” por ser gerente da minha empresa, logo ao princípio… tive os layoffs iniciais e entretanto depois disso já não, já não tive nada, tive uns concertos e fui tendo mais um… tive um apoio da DGArtes para este ano fazer a itinerância do meu espetáculo, do projeto Cabrita e pronto! Basicamente, apoios… apoios não tive… também, a verdade seja dita que também não… a partir de uma certa altura senti que estava um bocadinho melhor do que a maior parte da malta e não quis concorrer e deixar para quem precisasse mais, porque havia muita gente pior do que eu!

Francesco: E agora, observando mais uma outra perspetiva desta vivência, em termos de criatividade, como é que ela te afetou? Ou seja, ficaste em casa confinado, conseguiste trabalhar? Compor, fazer… eu vi que…

João Cabrita: …sim! Porque há sempre uma espécie de síndrome do impostor no artista, que é de nós não merecermos bem a sorte que estamos a ter, e isto, pelo menos comigo é bastante forte e às vezes acho que é mais uma sorte do que talento ou trabalho, ou quer que seja… então faço, sinto… que tenho sempre que fazer qualquer coisa que me faça sentir útil então, por exemplo no meu primeiro confinamento eu resolvi… como sei que não sou uma pessoa de… não sou muito estudioso enquanto saxofonista, achei que uma maneira de me por a trabalhar e a estudar, era compor um tema por mês ou por semana e por aí fora e foi aí que nasceram as Quarentine Sessions que foi basicamente eu a estar a trabalhar continuamente e a tocar! E o compromisso de por as coisas cá fora com uma regularidade, também me obrigou a não deixar as coisas ir abaixo…

Francesco: …e isto foi ao longo de todo o confinamento, não tiveste momentos de quebra emocional ou…

João Cabrita: …sim! Epá! Porque nós já… é a tal história: a tal síndrome do impostor já faz pensar que nós… que a cultura não é bem… um bem assim tão essencial como a comida como habitação, como a saúde ou educação… mas a verdade é que é, porque é a única coisa que nós distingue enquanto civilização, enquanto país de outro país, não é a localização geográfica, é a nossa cultura! Portanto… e como se viu aliás com o confinamento, o consumo de bens culturais aumentou imenso, porque as pessoas sem livros, sem discos, sem cinemas, sem teatro… sem teatro não… mas tudo o que eram coisas que são, que estão registadas ou gravadas ou que se podem ver em diferido foi… aumentou imenso, exponencialmente! Portanto é de facto um bem essencial e é por causa disso, eu também me forcei a fazer este tipo de coisas e continuar a fazer, a produzir novo trabalho e também em boa verdade, na minha vida normal estou sempre a queixar-me que não tenho tempo para compor, então… estou a adiar discos… então, aproveitei, pronto! Olha… não é que a inspiração venha sempre, mas seu eu trabalhar continuamente, pelo menos quando ela vier eu estou lá com as ferramentas na mão, prontas a receber e acho que foi um bocado por ai a minha lógica de…

Francesco: …mas o teu disco é anterior à pandemia?

João Cabrita: É anterior! Mas aconteceu também num período mais ou menos parecido, que foi o… tive um buraco de dois meses em que terminei a primeira tour do Tiger Man do “Misfit” e estava ainda a acabar o disco dos “Back on track” dos Cais do Sodré Funk Connection. Normalmente estas coisas vão parar umas encima das outras e eu andei a fazer malabarismos com a agenda, neste caso não: foi ao contrário, fiquei com um buraco sem concertos de dois meses e então comecei a compor por exercício, para guardar ideias mais pá frente e por aí fora e foi de aí que nasceu o disco…

Francesco: …que nasceu o disco, fantástico! Sentiste que estes vídeos, estas lives que fizeste nas “Quarentine Sessions”, tiveram algum sucesso de público, alguma resposta…

João Cabrita: …sim! Não foi uma coisa massiva mas… o que eu faço não é uma coisa como o rapper gang ou aquelas maltas de… incrivelmente famosas nos youtubes da vida… mas senti que sim, que havia uma adesão das pessoas bastante alta e houve muita gente que gostou e inclusive para mim, a cereja no topo do bolo foi… como adiamos o lançamento do disco para depois, para o final deste ano, acabou por se incorporar… estas Quarentine Sessions num disco bónus na versão de vinil do meu álbum… portanto…

Francesco: …ah! Vai ser um disco bónus?

João Cabrita: E é um disco bónus no vinil do meu disco! É um 10 polegadas, um mini LP que está junto com o meu álbum!

Francesco: Fantástico, não tinha percebido disto!

João Cabrita: Acabou por ser um trabalho que acabou por dar frutos! E assim fica registado…

Francesco: …super produtivo! Então, o que me interessa por exemplo perceber, na perspetiva dos músicos, visto que agora muitos festivais foram feitos online porque não se podia meter público, muitas plataformas que estão surgindo agora sobre o live streaming, sobre a apresentação e a possibilidade de acesso a um público global, o que é que sentes em relação a isso, já que também foste muito ativo neste campo?

João Cabrita: Sim! Eu o que eu acho em relação aos festivais ou aos espetáculos em live streaming, tem um problema ainda por resolver que é a parte do gerar receitas, porque nós temos uma postura em relação aos conteúdos de internet, em que é tudo mais ou menos gratuito e portanto… o problema que nós temos por exemplo nos espetáculos de lotação curta é que não são… não se pagam! A lotação é pouca, os preços dos bilhetes não pagam as despesas, então a maior parte das bandas ou vão em formatos reduzidos ou vão só com o cantor com a sua guitarra para se poder fazer alguma coisa e gerar receitas suficientes para sustentar os espetáculos. No live streaming é o mesmo, ou tu tens algum parceiro que entre com capital, ou tens uma plataforma que tenha um método de pagamento, mas mesmo assim estás sempre numa… ainda não há uma formula, ou bem que és um artista internacional, tipo sei lá… se os Cold Play fizessem um concerto em live streaming, em que toda a gente dava o que quisesse, de certeza que gerava receitas, ou Radiohead ou uma banda grande, mas não é uma solução ainda para a maior parte dos projetos musicais que aí estão, ou bem que é uma coisa de uma pessoa só em que 600 pessoas virem a dar 1€ e de facto são 600€ e já é qualquer coisa para uma pessoa, mas se for uma banda de 9 por exemplo, como as que eu tenho, já não chega a 100€ por cada um… portanto teríamos que fazer muitos concertos desses e é uma coisa que também vive pela novidade… e então há esta questão do gerar a receita que ainda é difícil de chegar a um sitio onde isto seja realmente viável…

Francesco: …é uma questão também técnica, muitas pessoas fizeram live sessions em casa por exemplo com tecnologia rudimental e outras que…

João Cabrita: …sim, sim! Houve muita boa vontade ao princípio e necessidade de fazer coisas para… havia uma espécie de sentido de comunidade…

Francesco: …entreter…

João Cabrita: …exatamente! Um sentido comunitário mesmo no primeiro confinamento que entretanto já se perdeu mas em que os artistas fizeram a sua parte em que também partilharam um bocado este momento e estiveram a contribuir para o entretenimento das pessoas no confinamento. Mas de facto foi uma coisa que na primeira fase foi toda ela mais de boa vontade do que de meios! A partir do momento que entraram mais meios, mais à frente… já se chegou a este problema, que é o problema da sustentabilidade do negócio todo da música e enquanto nós não… de facto, enquanto nós não gerarmos… encontrar maneiras de gerar receitas, a coisa não é muito viável, mesmo!

Francesco: Exato! Posso perguntar por exemplo, naqueles 30/40 concertos que fizeste em 2020, o choque de tocar num palco com uma audiência isolada entre aspas…

João Cabrita: …alguns deles, metade deles foram online até… foram coisas compradas por Câmaras e com seis pessoas da Câmara, só os dirigentes e por aí fora… outro foi um postal da cidade de Chaves, um postal musical… mas houve alguns, sim é muito… na verdade o que tu pensas é: que maravilha estou a tocar outra vez e estão aqui pessoas, são poucas mas estão todas felizes de cá estar e de usufruir do espetáculo e… então há uma alegria partilhada muito grande e maior do que o normal porque, o normal deixou de haver… pá atrás! Depois quando… mais á frente é que é aquele embate, que é realmente isto é horrível de estar a tocar por tão pouca gente e em circunstâncias normais, se não for alguém que tivesse pago, este espetáculo se calhar não se podia estar a fazer! É assim, eu estou mortinho para voltar a tocar com gente colada ao teto, a suar todos uns para cima dos outros, ou numa quinta, um parque da Bela Vista com um mar de cabeças assim… até a perder de vista, epá! Estou mortinho, sim! Mas não posso deixar de ficar feliz por todas as oportunidades que tenho para encontrar público!

Francesco: Ok! Então para terminar a nossa conversa, queria saber se agora, digamos… como cidadão e artista, se tens alguma espectativa do sistema, da política sobre o sector cultural, se isto poderá um dia mudar ou se pelo menos a pandemia trouxe à tona a precariedade em que os artistas vivem e portanto algumas consequências poderão haver…

João Cabrita: …eu acho que o principal, no meio desta porcaria toda que nós estamos a viver, que de facto é fruto da nossa… do carácter precário da nossa profissão, nossa e dos técnicos e de toda a gente associada a área dos espetáculos e dos eventos, acho que houve uma coisa de bom, porque eu normalmente sou otimista nestas coisas e acho que houve mesmo uma coisa bom que é de facto… foi, a parte… os políticos a aperceberem-se da precariedade da nossa… da especificidade da nossa área e a haver passos dados e estarem a se dar passos, que embora sejam bastante pequenos, mas pelo menos vai se criar um Estatuto do Artista, do intermitente… pronto, do contribuinte intermitente, não sei como é que se vai chamar… mas pelo menos já é um pé na porta, agora já estamos aqui a começar a fazer…

Francesco: …pelo menos a falar disso…

João Cabrita: …é! Exatamente, porque isto é tão idiota… é que não… por exemplo, há coisas absurdas… agora já não tenho recibos verdes há muitos anos, mas há muito tempo atrás se falava nisto e não tinha repercussões, que era: se eu fazia retenção na fonte quando recebia, porque não podia reter uma percentagem do que recebia também para a Segurança Social? E em vez disso pagar um valor fixo todos os meses que muitas vezes era mais alto do que eu ganhava neste mês e este tipo de situações só existem porque as pessoas desconhecem… e os decisores políticos desconhecem as particularidades da nossa profissão! É verdade, por exemplo, eu posso passar… posso estar num mês em que ganho bastante dinheiro, mas posso passar três em que estou a fazer um álbum e a não ganhar absolutamente nada, tu aliás vês… quando eu compus o meu primeiro álbum tive dois meses, três meses na verdade, foi de Novembro a Fevereiro, sem receber um tostão que fosse… recebi zero! Felizmente tinha dinheiro poupado e fui me orientando e assim é como aconteceu na pandemia, portanto, não! Estas coisas não podem acontecer! Tem de haver uma maneira destas… de nós sermos contribuintes de acordo com o que ganhamos, portanto do sistema ser mais justo e de ter… de estar atento a este carácter, que nós… que é particular… é diferente, mas estamos num bom caminho… já começou!

Francesco: Estou absolutamente de acordo contigo! Agradeço, muito obrigado! Eu queria… tinha só uma última pergunta, queres por exemplo indicar uma ou duas live sessions, ou músicas que produziste naquela altura da pandemia mais profunda, para podermos linkar aqui à entrevista, eu meto o link e o público pode ir ver…

João Cabrita: …ah ok! Pode ser o “Waiting for Waits” que é uma homenagem ao Tom Waits e o “Ugos walk” que é uma homenagem ao mais entusiástico editor discográfico de Portugal que é o Hugo Ferreira da Omnichord Records!

Francesco: Ah! Fantástico! E encontramos isto claramente no youtube?

João Cabrita: Sim! No youtube, João Cabrita e encontras logo…

Francesco: …perfeito! Muito obrigado então Cabrita, até breve, bom verão e bons concertos!

João Cabrita: Sim a ti também!

Francesco: Obrigado! Um abraço, obrigado!

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