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05.05.2022

Projeto Ágora: entrevista com Márcio Silva (29/04/2021).

Radio Olisipo · PROJETO ÁGORA: MÁRCIO SILVA

Entrevista com Márcio Silva (Edu Mundo) (29/04/2021)

Edu Mundo é o nome artístico de Márcio Silva, músico natural do Porto. Tocou bateria no grupo Reggae Souls of Fire, viola braguesa nos Diabo na Cruz e bateria nos Terrakota. Integra atualmente os Fogo Fogo, grupo de música de fusão com influências de Cabo Verde. Edu Mundo tem composto canções para outros artistas, destacando-se “Pantomineiro”, música que integra “Rua da Emenda”, de António Zambujo, e “Eu Entrego”, que faz parte do disco “Moura”, de Ana Moura. Edu Mundo canta no seu projeto à solo e em Cordel, grupo que lançou o seu primeiro álbum “Cordel” (2019) e que prepara o lançamento do novo álbum.

Em resposta à situação de atual emergência devida à pandemia do COVID-19 e à necessidade de promover iniciativas que possam avaliar e atenuar o impacto no âmbito das artes performativas, investigar os efeitos da crise, com enfoque no sector da música, documentar as estratégias aplicadas pelos artistas nas suas atividades criativas e de performance, o Projeto Ágora convida Márcio Silva, para compreender os efeitos provocados pela crise sanitária, quer no nível individual, quer no âmbito do sector cultural em Portugal.

Francesco: Bom dia caro Márcio Silva! Bem vindo aqui na esplanada…

Márcio Silva: …da Graça!

Francesco: Do bairro da Pena! A Graça está do outro lado, é um prazer ter te aqui, podias te apresentar em quatro frases, ou como quiseres… quem és?

Márcio Silva: Então! Eu chamo-me Márcio Silva, venho do Porto e basicamente sou um músico, compositor, que começou pela bateria, comecei por tocar bateria noutros projetos e depois mais tarde acabei por gostar da composição e da guitarra e de instrumentos harmónicos e passei a compor também, basicamente é esta a minha função!

Francesco: No mundo e na sociedade…

Márcio Silva: …não sei! Mas pelo menos sinto-me útil desta maneira!

Francesco: Que bom! Te convidei então a esta entrevista, já que passas por Lisboa, para falar de algumas coisas, já entrevistei outros músicos e interessa-me saber o impacto de toda esta história da pandemia, desde Março de 2020 até hoje, já passou mais de um ano. Estamos agora num período de ligeiro desconfinamento, mas tirando umas conclusões pelo momento atual que estamos a viver a pandemia teve um impacto sobre a tua vida… por exemplo a nível financeiro?

Márcio Silva: A pandemia mudou drasticamente o meu quotidiano, a maneira como eu vivia, tanto a música como a minha própria vida, porque o meu trabalho é sobretudo viajar para ir deslocar-me para um local e chegar lá e tocar ou dar música às pessoas daquele espaço. A partir do momento em que a pandemia se instalou e se propagou pelo país, eu perdi a possibilidade de fazer estas coisas, de poder viajar e deslocar-me para outro sítio e executar o meu trabalho. Então acabei por ficar… acabamos todos por ficar confinados à casa e em casa não dá! Só se faz a primeira parte do trabalho, que é compor ou produzir qualquer coisa, mas depois o trabalho de mostrar de escoar este trabalho, isso não acontece! Então claro que mudou drasticamente a minha vida, em termos práticos, nestas coisas efetivas de poder trabalhar ou não e isso consequentemente trouxe questões económicas, porque como eu não podia ir tocar, também não recebo destes concertos que não vou tocar e assim como eu… dezenas de pessoas, isto falando no ramo da música, mas se formos para o teatro é a mesma coisa, se formos para outros ramos é a mesma coisa! Afetou toda a gente nesta maneira, pelo facto de termos de ficar privados em casa, outras pessoas até gostaram porque não gostavam de ir trabalhar para o escritório e de repente puderam trabalhar em casa, a fazer a mesma coisa que faziam no escritório… fazer em casa… e muitas pessoas até… a vida até melhorou, até gostaram desse… dessa coisa!

Francesco: Do teletrabalho…

Márcio Silva: …mas para nós foi… para nós músicos e agentes culturais, foi um ano parado… congelado, foi uma congelação assim… e isto depois claro, teve vários efeitos, principalmente económicos, não é? Não aconteceu nada, 2020 toda a gente estava a projetar assim um ano incrível, toda a gente cheia de projetos e não sei o que…

Francesco: …te aconteceu de pensar alguma vez de mudar de trabalho ou ter que procurar outra coisa, para sobreviver a este zero absoluto?

Márcio Silva: Sabes que esta sempre foi a minha… eu sempre imaginei que ser músico era trabalhar em muitas coisas, porque gostar de música muitas vezes é não conseguir viver da música! E eu para poder viver de fazer música ou fazer aquilo que eu gosto tinha que… sempre tive que trabalhar e fazer biscates em outras coisas: trabalhar numa loja de roupa, ou trabalhar num… já trabalhei na Porto Editora, trabalhar… assim! Biscates, coisas do inverno, que são normalmente as temporadas onde nós não trabalhamos, se não estivermos a gravar discos, então para mim já é normal estar a trabalhar numa coisa que depois me vai ajudar a pagar o investimento da música. Felizmente nesta pandemia não tive de fazer isso, mas comecei a fazer outras coisas para ocupar a cabeça, nomeadamente plantar, plantar legumes e flores e coisas do género, porque no sitio onde eu estava tinha um campo onde eu podia fazer estas coisas, então… acabei por trabalhar mais por ocupar a cabeça, do que propriamente para tirar dinheiro e… porque felizmente tive a possibilidade de juntar antes da pandemia, no início do ano eu decidi reunir todos os ganhos do verão passado, então a pandemia foi passada com esse bolo e preocupei-me só em existir! Mas ao mesmo tempo a ver uma vida paralela ali na agenda do meu telemóvel a ver que… acordar e dizer e ver que o telemóvel dizia… hoje tocas na Galiza!

Francesco: A mim também aconteceu..

Márcio Silva: …e perceberes que aquilo é um avatar, é uma coisa que é paralelo que não vai acontecer e tu estás confinado em casa! Pronto, então é… tem essa dicotomia que é uma coisa nova, nunca ninguém pelo menos na minha geração tinha vivido uma coisa dessas, a não ser que fosse obrigado pelos pais a ficar em casa!

Francesco: Exato! E em termos de… neste período… em termos de trabalho criativo, conseguiste te dedicar à música, na composição e na criação ou o confinamento em casa também te bloqueou em algum período?

Márcio Silva: É engraçado que instrumentistas e malta… pelo menos eu falo da área que eu conheço, instrumentistas e malta compositores, já são pessoas que têm obrigação de passar muito tempo sozinhos, porque a composição obriga a ficar muito tempo sozinho. O estudo do instrumento, seja ele qual for… se a pessoa for dedicada vai ter que passar muito tempo sozinho agarrada àquilo… então isso já é uma espécie de quarentena! Muitas vezes, quando estamos a gravar um disco ou quando vamos de residência artística, ficamos uma semana, duas semanas dentro de uma casa só a trabalhar um projeto e isto é uma coisa vista como normal… mas como não está o mundo a dizer: tens que ficar em casa! Ninguém sente esta pressão, mas nós já fazemos esta quarentena! Eu pelo menos fico muitas vezes… enquanto a música não chega ou está ali e eu já descobri um riff qualquer, mas a música ainda não chegou, eu fico de pijama três ou quatro dias ali a trabalhar, a repetir, a pousar… depois vou fazer um café e volto e pego outra vez e já saiu mais qualquer coisa e às vezes isso demora. Ou seja, para mim

a cena de estar em casa e passar assim alguns dias em casa, já era uma coisa normal! Para mim? Já era uma coisa normal! Agora imagina o que não deve ter sido para aquelas pessoas que precisam de horas para coisas… trabalhar, às 8 horas vou ao dentista, às 10h vou sair e vou buscar o miúdo à escola e depois vamos… há pessoas que precisam destes ganchos, destas pressões do horário e para estas pessoas é que foi realmente um desequilíbrio. Eu consegui compor porque eu olho para a composição um bocado como um escape ao meu aborrecimento! Quando me sinto aborrecido é a melhor altura para eu compor. Quando estou super excitado e com vontade de fazer muita coisa a probabilidade de compor vai sair sempre… é sempre qualquer coisa que me vai servir a mim como pessoa, vou fazer uma música para uma coisa que eu quero! Enquanto eu estou aborrecido, eu não tenho bem um tema! Sai aquilo porque eu estou aborrecido… é quase um escape, uma função para combater o meu aborrecimento!

Francesco: Um aborrecimento inspirador…?

Márcio Silva: Sim! E então na quarentena foi perfeito porque eu estava aborrecido constantemente, só que obviamente o foco da composição é um… mas o foco, há outros focos que eu por exemplo na quarentena não consegui… não consegui ler muito, apesar de ter o tempo todo e estar tudo ali para mim, eu não consegui ler muito! Porque depois havia outras coisas que desligavam… há sempre aquelas questões que estão num plano de fundo, quanto tempo é que vamos ficar aqui? Será que isto vai durar? Será que eu vou apanhar esta coisa? Será que eu vou passar esta coisa aos meus mais velhos? E essa sensação de uma certa culpa, de um inimigo invisível, porque de repente nós estamos a lutar contra um inimigo invisível! A gente não sabe se estamos a apanhar, se não estamos a apanhar. Então estas questões eram todas muito novas e todos nós estávamos com um certo melindre, estávamos com um certo medo de que essa coisa… que fossemos nós a personagem principal de um cenário apocalíptico, porque também depois os médias põem as coisas nestes termos, então toda a gente estava com muito medo de muita coisa, ainda por cima eu passei a quarentena com pessoas muito mais velhas e eu senti esta responsabilidade de poder ir à mercearia e chegar e matar o meu… então estas preocupações de plano de fundo, nunca me deixaram ficar sossegado ao ponto de eu me por a ler

o “Siddartha”, ou por me a ler o Herman Hesse, ou por me a ler algum…

Francesco: …a cabeça livre para…

Márcio Silva: …a cabeça livre para fazer… e limpa! Porque está sempre com aquela preocupação em pano de fundo, de que estamos a viver uma doença…

Francesco: …e esta preocupação entrou nas tuas letras ou na tua música de alguma forma??

Márcio Silva: Sim!

Francesco: Se bem dissimulada… eventualmente…

Márcio Silva: …eu a quarentena, aproveitei para fazer uma coisa um bocadinho diferente daquilo que me é natural. Eu normalmente escrevo sobre coisas que estão fora de mim, raramente escrevo sobre o que eu estou a pensar das coisas. Apesar de eu na letra estar a dizer que eu estou a pensar qualquer coisa, estou normalmente a vestir-me dentro de uma personagem. E esse “Eu” que a letra está a falar, não é… não está ligado com a pessoa que eu sou! Às vezes eu estou a dizer na música: ah! Eu penso isso… mas não sou eu, é uma personagem que eu vesti… e na quarentena decidi de ter opinião, como compositor, decidi por o meu “Eu” lá dentro, então tenho uma data de canções que servem de diário. Por exemplo “O efeito de uma asa de animal”, é um bocado a falar disso! Basicamente é alguém que trincou uma asa de morcego na China e aquilo… este efeito dominó, depois com coisas meias de paradoxo… é pegar em coisas meia de paradoxo, do género: de repente as pessoas têm todas que se fechar em casa e a preocupação máxima é ter papel higiénico, em vez de ter comida! Ou de repente as pessoas que estão habituadas e que não sabem fazer comida e que sempre encomendaram comida, agora o empregado de mesa é o estafeta, já não existe empregado de mesa, é o estafeta! É a pessoa que leva à casa… então são estes pequenos, eu reparei nestes pequenos paradoxos, na maneira como as pessoas tentam se libertar destas prisões impostas, para continuar os seus costumes, como se os seus costumes fossem mais importantes do que estas flexibilidades que ainda são importantes ter… quando aparece uma doença, um terramoto, uma coisa qualquer. Então, aí eu decidi dar uma opinião pessoal, ter uma opinião pessoal sobre a coisa, coisa que nunca tinha acontecido, então é mais uma espécie de diário…

Francesco: …de diário de bordo…

Márcio Silva: …mas lá está! É uma coisa que eu tive que me adaptar, porque não estou habituado a escrever… eu a dizer coisas, eu Márcio Silva a dizer: olha, agora vou vos dizer o que eu acho sobre as montanhas! E desta vez começou a acontecer isso!

Francesco: Era provavelmente… e é uma altura em que a nossa opinião conta

alguma coisa, não é? Porque é algo que estamos a viver de excecional, assim de diferente…

Márcio Silva: …sim é totalmente novo! Não há… aconteceu há cem anos atrás de alguma maneira, de algum modo parecido, mas não havia este fluxo de informação que agora existe! Na altura em que apareceu a gripe espanhola, provavelmente o que acontecia na Malásia ficava na Malásia! E de repente hoje em dia, o que acontece na Malásia tu tens… está no noticiário!

Francesco: E no teu telemóvel…

Márcio Silva: …no minuto seguinte!

Francesco: Exato!

Márcio Silva: E já há essa sensação do que o que acontece, onde quer que seja no país, influencia-nos diretamente… e isso muda tudo, muda tudo porque nós temos noticias de tudo a toda hora e para o lado bom e para o lado mau! Então é um bocado isso, e… sim! É um bocado… é todo um novo mundo que está por descobrir e nós estamos encima do muro, no fundo! Porque vimos o que aconteceu até aqui… somo filhos da cassete e do cartucho de música, mas entretanto também apanhamos o walkman e o CD e o discman e agora vamos… já passou ao mp3 e já deixamos… a maior parte dos nossos filhos já não ouvem álbuns, já só ouvem singles e os singles que têm vídeo, se não tiver vídeo? Não existe! E nós estamos a viver esta coisa toda, somos a geração ou somos das gerações que está encima do muro, não tinha internet… os nossos filhos perguntam como é que nos vivíamos, como é que nos conseguíamos viver no meio das pedras?

Francesco: Sem telemóvel?

Márcio Silva: na gruta…

Francesco: …exatamente! Trouxeste aqui o discurso e a conversa num plano, onde eu queria também… uma direção para onde queria também chegar, que era a questão do futuro, não? Do que é que está acontecendo, do que vai ser também o nosso trabalho em termos de contextos performativos, formatos… estavas a falar exatamente do álbum, da música avulsa, das estratégias diferentes dos músicos…

Márcio Silva: …certo!

Francesco: Quando pensas nisto, o que é que te surge? Tendo em conta que hoje, exatamente o álbum quase já não tem mais sentido, os grupos dos músicos mais jovens fazem música avulsa, são contratados para criar músicas avulsas, com vídeos e grandes produções em youtube, views, etc. números…

Márcio Silva: eu acho que vão aumentar acima de tudo, ou sinto… não é uma coisa de achar, porque aqui no meio tem uma esperança! Óbvio, quando eu digo que eu acho… aqui no meio vai uma quantidade de esperança, que é: eu quero acreditar que vai acontecer assim! O que eu estou a sentir, é que vão aumentar as opções: quem gosta de álbuns, vai continuar a gostar de álbuns, porque ainda existem gerações que ouvem música assim, como se o álbum fosse um livro e cada música fosse um capítulo deste livro… e a primeira música faz sentido para contextualizar a última, apesar de hoje em dia, cada vez mais a sociedade imprime velocidade às coisas, ou seja nós não temos tempo para sentarmos num sofá e ouvir 50 minutos de música sem estar a fazer mais nada! É como se estivéssemos a perder o nosso tempo! E há uma certa parte da sociedade, principalmente a mais juvenil que imprime ou imprimem lhes esta velocidade ao ponto de eles não poderem perder muito tempo a ouvir um disco. E então eles seguem também este movimento, que é um movimento “pop” de fazer música avulsa, como tu dizes… tipo, o que interessa são os singles e é aquelas balas que batem ali e não as músicas que nem são single mas que de alguma maneira depois vão vestir todo o conceito e… eu acredito que se abrirem estas opções todas, pode-se tornar uma coisa mais justa em algumas coisas. Por exemplo, nós… a nossa sociedade é muito material, no sentido em que interessa-se muito pela beleza e que o artista tem que ser belo, o artista tem que ser bonito, perfeito! Não pode ter mono celha, ou não pode ter aquele bigodinho à Badaró, ou não pode ser obeso, ou não pode ser anorético… e de repente com esta história toda de termos que ficar em casa, já eu começo a ver amigos meus a tocarem em casa para plateias que estão lá do outro lado, pessoas que têm uns óculos virtuais e estão dentro de um café virtual e neste café virtual está o meu amigo a tocar! Provavelmente tem um câmara e uma aplicação que cortou toda a paisagem do quarto dele e pôs lá um palco, ele pode até estar a tocar no Evereste, se quiserem põem lá o que quiserem. Eu acredito que vão existir muitos músicos que vão por este caminho, um caminho paralelo, virtual, onde vão tocar para pessoas que estão do outro lado, em casa no seu conforto. Mas claro que vão existir pessoas que vão querer tocar in loco, mas eu sinto que vai abrir este caminho… da mesma maneira, começam a existir concertos dentro de jogos de… videojogos…

Francesco: …ah! Isto não sabia… como? Concertos dentro de videojogos?

Márcio Silva: Sim, agora o Fortnite, por exemplo, que é um jogo que teve uma aceitação global, mundial… no início da pandemia começou a juntar grandes marcas, grandes entidades discográficas, pagaram a… nem sei ao certo, mas a quem fez o Fortnite, criaram avatars para os artistas e as pessoas que queriam ver aquele concerto, aquele concerto estava publicitado e então, existe como se fosse uma base comunitária dentro do jogo, onde tu podes ir lá e interagir com outros avatares, não é? Para entrar no jogo, tens de criar uma personagem e bastava existires dentro desta plataforma e ias ver, acho que foi um hip hopper, um rapper que fez um concerto, onde ele a meio se transforma em dragão e depois desaparece e aparece como uma ave e sempre a tocar… a cantar neste caso! E eu olhei para aquilo e fiquei fascinado, porque de repente, um cego ou uma pessoa que perneta, ou maneta… que se calhar até ele tem uma voz inacreditável e sempre foi posto de lado, pela figura dele não representar esta perfeição, se calhar esta pessoa nesta situação vai ter uma oportunidade como todas as outras! Porque… se ele for um avatar, as pessoas vão reparar só naquilo que ele está a fazer, até podem reparar na figura dele, mas vai ser menos importante do que aquilo que ele está a fazer e de repente, ai vira meio anarca, não é? Eu posso querer ir cantar no palco em vez estar a ver a mim, estás a ver o Pikachu ou… então, neste aspecto eu acho que pode ser mais justo de… de repente, a malta que está no topo da pirâmide da música pop, tem que ser super lindo e tem que representar uma ideia de beleza, de um nicho qualquer. Eu acho que este portal, esta coisa de… lá está! Quando digo eu acho, quero acreditar que ao abrir este espectro para um campo virtual, demostre que os desafinados também tem coração! E que existem pessoas que se calhar têm muito talento , mas que não têm a figura que as pessoas estão habituadas… ah! Este é mesmo bonito, vou ouvir, vou dar uma oportunidade! E se calhar, pode ser que se encontrem muitos artistas que nunca teriam hipótese porque não têm aquela figura… mas isto é só, é… lá está… é um “eu acho” misturado com “espero que aconteça”! Claro que depois o dinheiro também entra aqui e obviamente que quem tem mais dinheiro vai produzir melhores avatares e aí entra outra vez naquela bola de neve que a gente já conhece. Mas eu olho para isto com um aspecto… de uma maneira positiva, porque tudo o que traz criatividade… que projeta criatividade ou que obriga, que instala de alguma maneira um ambiente instável ao ponto de nós podermos criar, eu acho isso sempre positivo! É o crisol… a crise, a separação dos metais e eu gosto destes momentos de ruptura 

porque é aí eu acho que os criativos sobrevivem sempre, porque apresentam novas soluções e apresentam novas maneiras… quem fica “rotinado” e quer forçar a rotina é que se torna inflexível de alguma maneira, agora para onde vai? Eu nem sabia que havia internet, quando saquei o primeiro disco dos Beatles até chorei, agora imagina para frente… uma pessoa nem sabe o que é que vai acontecer! Mas neste momento a cabeça está aberta a tudo, porque tudo pode acontecer, não faz a ideia… já dei um concerto a olhar para um telemóvel e tu também!

Francesco: O que é que, por exemplo… esta experiência de tocar… era um live streaming? Verdade? com Fogo Fogo, foi… ah! Foi também com outros projetos?

Márcio Silva: Sim… e toquei à solo também! Como eu só estava habituado a tocar com público e a ter a reação do público… é como se estivesse amputado… de repente estar a tocar e não ter aquela reação, mesmo quando é má! Quando as pessoas não gostam! E essa reação é importante para o artista, para o artista perceber se deve seguir naquela direção, ou se não deve seguir naquela direção. Quando o público está do outro lado, mas dum outro lado onde não se consegue percepcionar o que ele está a sentir, o que ele está a ver… porque num público a gente percebe, pelos olhares, pela dispersão, se as pessoas estão dispersas, se estão a conversar umas com as outras, nós acabamos sempre por ter este jogo de cintura de poder mudar o alinhamento, tentar buscar uma canção que provoque ou que… e quando estamos no telemóvel, só vemos um número… estão aqui 300 pessoas a ver e acaba a canção e… depois há outra coisa que é, o espaço onde nós tocamos é o nosso espaço, o nosso espaço intimo onde nós temos a possibilidade de errar! E o espaço do concerto é um espaço que dentro da cabeça é um espaço de função, de serviço, onde nós vamos lá cumprir o nosso trabalho e de repente estamos a misturar os dois espaços: eu tenho que estar em casa e esse mesmo espaço, é o espaço onde eu estou a dar concertos e a servir… e isso para mim é meio esquizofrénico, porque de repente acaba o concerto, eu poso a guitarra e vou à minha casa de banho e de repente vou à minha cozinha a fazer uns ovos estrelados e estou na mesma, no mesmo espaço físico que deveria ser um espaço de função e de serviço, eu tipo me deslocar até este sitio e ali vou fazer o meu melhor… e de repente eu estou a misturá-lo com o meu espaço de casa, o espaço de improviso, o espaço do erro e isso a mim foi a única coisa que me deixou assim meio… eh! Espera aí! Mas… estou a dar um concerto, mas é em casa? Mas em casa é aonde eu ensaio, onde eu erro, onde eu posso…

Francesco: …e de repente tens de fazer…

Márcio Silva: …e de repente, estou de desresponsabilizado porque eu em casa posso fazer heresias, posso de repente escrever o que eu quiser e aquilo fica ali dentro confinado e de repente misturam-se estes dois espaços: o espaço de serviço e o espaço de lazer e de intimidade. E então depois acontecem mais uma vez estes pequenos paradoxos, estas coisas da pessoa que têm um live streaming em casa e veste o fato só da cintura para cima…

Francesco: …e de baixo o pijama…

Márcio Silva: …e debaixo está o pijama e isto é possível acontecer, não é? Porque, pronto! E connosco acontece a mesma coisa, de repente darmos uns concertos e o concerto em casa, sem reação do público…

Francesco: …com um som às vezes duvidável, não é? Tipo o som do telemóvel, ou…

Márcio Silva: …a maior parte das vezes com som duvidável… e depois tem esta coisa, que pelo telemóvel é muito difícil ser-se fidedigno em termos de som! Mas as pessoas estão tão imediatas, que parece que é importante, mesmo sendo um som de merda, ter isso presente! E depois também percebe-se muito, percebeu-se muito com esta… claro que eu já estou a misturar uma data de assuntos, mas… percebeu-se nesta quarentena o lugar da cultura. Não existiram coisas que estavam em posições diferentes, dentro das prioridades de uma sociedade, que de repente por uma questão de justiça voltaram a ocupar o espaço que deviam ter… que devia ter sido ocupado sempre. O caso da medicina por exemplo, que nós temos greves de enfermeiros, greves de médicos, constantes… a pedirem melhores qualidades de trabalho, melhores condições de trabalho e não sei o que… e que de repente com uma pandemia as pessoas perceberam realmente:

é melhor tratar bem os médicos! Se não!? E o mesmo acontece com a cultura, de repente as pessoas todas dentro de casa precisam de conteúdo, conteúdo para existir, para ocupar a cabeça, então o que é que seria desta quarentena se não existisse a netflix, se não existissem filmes, se não existisse música, se não existisse o spotify, que dá ali às pessoas uma ideia de ser gratuito, está aqui à mão de semear… é só pegar e… e essa valorização de quem compôs, quem produziu este conteúdo artístico continua assim meio marginal. A não ser que sejam os grandes que tem uma grande maquina publicitária por trás, sempre e constantemente a dizer: “foi ele que fez, foi ele que fez, tens que lhe dar valor”! Mas de repente, na quarentena, 8 meses, 10 meses, 12 meses… e nós temos ali séries e precisamos da cultura para nos ocupar…

Francesco: …se bem que neste caso netflix e canais parecidos é uma cultura bem massificada, mas pronto…

Márcio Silva: …é popular, é uma cultura mainstream, mas não deixa de a ser… os meus sobrinhos por exemplo, eles não leem um livro, mas entre não saberem nada e puderem ver, por exemplo… uma série que fale sobre o…

Francesco: …o império romano…

Márcio Silva: …por exemplo, o império romano, para mim é melhor que eles vejam a série e pelo menos saibam e tenham uma ideia de qualquer coisa, que nós já sabemos que o episódio é preso em 8 segundos, nos primeiros 8 segundos tens de ficar preso àquilo, se não mais tarde ou mais cedo vais te levantar, vai buscar um café e aquilo já foi, desligas e pões um combat box ou uma coisa qualquer random. Mas aí também se definiram prioridades, a pandemia também traz esta ideia de definir, de reorganizar uma data de coisas dentro da sociedade, nomeadamente a educação, que aí todos os putos tiveram que estar em casa e os país viram o que é lidar com um puto 24 sobre 24 horas e muitos deles devem ter dito assim: santa é a tua professora! Da mesma maneira que as relações, quando uma relação está mais ou menos estabilizada, tem um quotidiano…: 2ª feira levantam-se os dois e ele faz-lhe o pequeno almoço e ela vai trabalhar e ele fica mais um tempo, toma um banho, vai trabalhar também, encontram-se às seis, chegam à casa, ele traz as compras, ela até faz o jantar, ele estende a roupa, vêm um filme, ela adormece de cansaço e ele adormece também, vão para a cama, acordam, ela faz o pequeno almoço, pronto! E de repente… não há o sair para ir trabalhar e ficarem juntos 24 sobre 24 horas? Isso acabou com muitas relações porque as pessoas não sabiam lidar com a outra pessoa no tempo que outrora era de trabalho… então tem que saber lidar com coisas e ver outro tipo de características numa pessoa, que nós nunca tínhamos visto! Porque lidávamos com aquela pessoa no pós laboral e então estava tudo certinho, não é? Batia tudo certo! Cada um ocupava a sua função: sai do trabalho agora vou ter com o meu marido, com o meu namorado! E então… todas estas coisas são novas para nós, se bem que parece que dentro da nossa inconsciência, quando nós vemos de uma maneira racional: educação, saúde? Claro que sim, têm que estar no pináculo da sociedade, mas não estão! É uma coisa quase hipócrita, não é? Meia cínica! Estas coisas são atiradas assim para os fundos assim… das prioridades! E a pandemia trouxe esta coisa e assim como na cultura também, só que nós vivemos em Portugal e Portugal tem muitos esquemas, muitos sacos, muitas… muitos negócios, muita coisa a acontecer, principalmente em termos políticos! E no meu país eu não me sento nada defendido… olho para o meu painel político e não há um que eu diga assim: este gajo vai me defender, esta senhora vai me defender! E estamos todos assim, todos nós… eu não conheço um artista que olhe para a Ministra da Cultura e diga assim, aquela senhora não podia ter sido outra! Está perfeita ali naquele lugar! Porque aí nos percebemos o quão desamparados estamos e é muito difícil estar… eu desconto… tenho um trabalho normal, apesar de ser músico e a maior parte da minha família assim: ok! Tu gostas de tocar música, mas qual é o teu trabalho… mesmo?

Francesco: É um clássico!

Márcio Silva: E depois chega a um plano político, a um plano maior e vemos que a visão é exatamente a mesma destas pessoas, da minha família que me dizem a mesma coisa… então é muito estranho! Eu ser alguém que traz cultura e que quero trazer coisas novas e coisas diferentes, ou mais coisas para aquilo que nós já temos e perceber que sou visto como uma ave rara que só quer andar ai a coçar a barriga e a beber umas cervejas e pronto! Basicamente….

Francesco: portanto…! Desculpa a interrupção…

Márcio Silva: Não faz mal! Basicamente num plano político, quando se tiram assim as condições todas a uma sociedade, de poder respirar e viver e palpitar, não é? Uma cidade cheia de pessoas e movimento… quando se lhe tira isso, começa-se a perceber as fragilidades da sociedade… é mais claro! Claro que se pode perceber com a sociedade em movimento, mas é muito mais claro entender as fragilidades de uma sociedade quando está tudo parado! E de repente eu, como agente cultural, uma pessoa que tende a trabalhar para a cultura, percebo que a cultura neste país é muito frágil! Excluindo meia dúzia de cantores ou de artistas que chegaram a um lugar comum, em que são unânimes perante um público português e estas pessoas de alguma forma são salvaguardadas, porque são queridas, são acarinhadas pelo povo! Eu acho isto, é meritório, é ótimo que aconteça, mas podia acontecer também com os artistas locais, aqueles cantores que são da coletividade e que estão em Freixo Espada à Cinta, só tem um cantor em Freixo Espada à Cinta, esta pessoa devia ser…

Francesco: Freixo?

Márcio Silva: Espada à Cinta! É uma localidade, podia ser Solorico de Bastos… de repente existe um grupo coral em Solorico de Bastos e apareceu a quarentena: morreu o grupo coral! Mas as pessoas adoravam ouvir o grupo coral… então há que proteger! É uma coisa que tirar… é preciso tirar a orquídea do sol, não é? E tem que existir alguém, se gosta de orquídeas, não é? Se acha que a orquídea é importante existir, tirar a orquídea do sol se não ela vai morrer. E a mesma coisa aconteceu com a arte, com a cultura… percebermos que a cultura não tem só a função de nós satisfazer! Nós ao interagirmos com a cultura, também estamos a modificar a cultura e a fazer com que ela acabe por refletir coisas que são nossas… pronto! E o que acontece é isso, nota-se muito estas fragilidades, estamos a caminhar encima de uma camada de gelo muito fininha e que a cada passo pode quebrar e nós podemos… e então nota-se essa coisa, nota-se muito isso e obviamente, por exemplo: eu achei que o ano 2020 ia ser um ano grandioso, tinha três discos para lançar, vários concertos consequentes destes três discos e de repente fica tudo fechado e não há concertos, há este concerto em live streaming e não sei o que!? Mas muda tudo! E eu como músico, ainda tive alguma possibilidade, agora imagina um roadie, ou malta que depende mesmo dos lives para viver…

Francesco: …um baixista…

Márcio Silva: …eh! E que tiveram que investir dinheiro, imagina pessoas que no final de 2019 investiram assim 50mil euros num P.A. ou assim, o ano de 2020 será à grande com material novo…

Francesco: …ficou tudo parado nos armazéns!

Márcio Silva: O pessoal morreu! Esta pessoa se não tem um fundo de maneio, não tem família para o suportar, esta pessoa meteu a corda no pescoço! E aconteceu isso com muitas pessoas! E a própria… o Ministério ou o governo, não tem capacidade, não teve capacidade de ajudar, de garantir que estas pessoas iam ter o mesmo nível de vida que tinham antes da quarentena e isso demostra muita coisa. Ou seja eu faço cultura, pratico esta ideia de cultura neste momento porque eu gosto, porque eu quero e eu sinto que este é o meu sonho, é a minha teimosia! Parece uma bênção e uma maldição ao mesmo tempo! Mas eu o faço por mim, se eu começar a pensar num aspecto coletivo apetece-me logo dizer, não! Não vou fazer absolutamente nada, esta malta não merece! E entra logo esta questão de justiça e de merecimento e de mérito, acho que merece ou não merece! Então cheguei à conclusão que eu faço, porque eu preciso de deitar esta coisa fora e preciso de estar por dentro disto, que isto faz-me feliz! Eu acabo um ensaio, por muito duro que seja, eu vou para casa com uma sensação de missão cumprida! Então é mais por ai! E isso eu acho que muda a cabeça um bocadinho de se toda a gente… se houver muita gente a pensar como eu, eu acho que vai mudar um bocadinho esta coisa, mas claro que voltando ao início… só aumentam umas opções, porque o pop vai continuar a ser pop, as pessoas vão… vai existir uma gama de pessoas que vão continuar a querer fazer música com o refrão a bater no segundo 30…

Francesco: …clássico!

Márcio Silva: E pessoas a acharem que aquilo é altamente, como se isso fosse uma coisa que tivesse que ser, não podem existir mutações a esta coisa…

Francesco: mas por exemplo, a pandemia desenvolveu também… sobretudo nas redes sociais, já que estávamos todos em casa isolados, uma discussão digamos coletiva sobre exatamente a precariedade, digo em vários canais das redes sociais, grupos que se juntaram, até grupos solidários com outros artistas, houve movimentação, portanto provavelmente este debate coletivo pode levar a alguma coisa! Pode também… sindicatos que estão se fortalecendo, ou seja pode ser este momento um momento digamos de passagem ou de transformação, ou de reset… isto, se calhar estou sendo muito positivo, mas o mundo da política… a classe política se deu conta que existe um movimento, existem pessoas, existe um debate público… e esperemos que isto possa levar a alguma coisa…

Márcio Silva: …eu aí sou pessimista! Eu aí tenho uma relação pessimista, que é: há um cinismo latente no meio desta coisa toda! A cultura é o que nós diferencia dos outros animais! É a nossa cultura, é o que nós trazemos de memórias, das nossas raízes, dos nossos pais, dos nossos avos, daquilo que nós ouvimos, daquilo que o nosso país diz acerca de nós mesmos, eu não sei quem eu sou se não for outra pessoa a dizer-me quem eu sou! Eu só sei que sou teimoso, porque outra pessoa insiste em dizer-me que eu sou teimoso! E a nossa cultura é a nossa identidade, é aquilo que diz quem nós somos de diferente dos outros, não é de melhor… é de diferente! E sem cultura nós somos iguais ao hipopótamo, à girafa, ou… temos um costume de sobrevivência e o que nós faz diferentes destas outras espécies é que nós conseguimos identificar e racionalizar sobre estes costumes artísticos, que em termos materiais não servem absolutamente para nada! Termos capital de guito, não serve para nada! Mas até a bem pouco tempo, um agricultor precisava de passar três meses à espera das batatas, porque ela estava a crescer, a batata estava a crescer… o batatal estava a desenvolver-se! Então precisa de passar três meses e nestes três meses era como se fosse uma quarentena, em três meses criam-se canções, criam-se cânticos, as pessoas rodam a caneca do vinho e a cultura é feita desta espera, desta maturação de coisas que vão aparecer, que nós sabemos que vão aparecer… mas enquanto não aparecem, aparecem outras: uma canção, um poema, alguém que escreve uma coisa que faz rir ou cómica…! E de repente com esta velocidade toda, já não há essa relação com a espera que a pandemia voltou a trazer, voltou a nós mostrar como é que era mais ou menos esperar e ter esta relação de espera associada a um lazer. Em Portugal a cultura é diferenciada, é diferente: quem é artista e quem é entertainer! E o entertainer normalmente ganha ao artista, porque o artista tem um lado encriptado. Existe uma parte daquela informação que não é dada! O espectador tem de ir ao encontro daquela mensagem e não lhe é dado tudo de mão beijada, a não ser que seja uma exposição para crianças, tu vais a um museu qualquer a ver uma exposição do Dali e não está lá por baixo: este relógio derretido quer dizer… é todo um lugar vazio em função da tua percepção e depois tu podes ocupar estes lugares vazios com umas definições que tu escolheres dar ao relógio a derreter, à formiga ou… e na música pop que hoje é vista como um estilo, antigamente a música pop era a música aceite pelo povo que era… que tinha-se tornado naquele momento a mensagem que o povo, não é? Como há músicas hoje em dia que são assim: “é sexta feira? ye” esta música é aproveitada… foi… toda a gente sente esta coisa do “é sexta feira”! Então esta música veio trazer essa sensação unânime para toda a gente e essas são as músicas populares, não é um estilo… agora é um estilo, música pop é um estilo, isto é muito engraçado! Mas… há essa diferenciação e essa valorização de uma coisa em prol da outra, a não ser que estejamos numa elite com muito dinheiro, a arte é sempre vista como uma coisa pelo povo, pela… pelas classes mais baixas é vista como uma coisa difícil, muito seria, muito encriptada, parece que eu vou ver um quadro, ou ouvir uma canção do Zé Mário Branco e parece que estou a abrir um cofre e não sei o código e tem esta coisa… só que é esta coisa é que é bonita, porque a medida que nós vamos abrindo e descobrindo o código, percebemos que esse código é só nosso e que as outras pessoas estão a abrir o mesmo cofre… tem outros códigos e tem outras definições! E essa é a coisa é que é bonita, nós levarmos para a casa um bocadinho mais de musculação das definições das coisas… e isso é arte! De alguma maneira, óbvio que também existe provocação… para mim isto é arte! O entretenimento não é bem assim, o entretenimento é… que é aquela coisa que também é imprescindível, mas no entanto é aquele filme do domingo que a gente sabe que o herói vai passar por uns problemas dificílimos e depois no final vai conseguir matar o vilão, que é sempre o vilão e o herói é sempre o herói e os dois tem características muito definidas: o herói é sempre bonzinho, ajuda as velhinhas a passar na paragem do autocarro, estas coisas… e o vilão é aquele que passa pelas poças de água e molha toda a gente que está na paragem! Então, no entretenimento o herói casa com a princesa e é tudo muito feliz, acaba e vamos comer um hamburger! E na arte não é bem assim, quando acaba esta experiência, a pessoa vai para casa e ainda vai a mastigar aquele lastro de percepção que chegou, fogo! Sei lá… é como ver um filme do David Lyinch ou do Tarkovsky, há muita coisa que não se chega lá! Então é preciso ir pelo caminho… ir ruminando e essa coisa é que eu acho que é interessante! E esta contextualização para que? O entretenimento e a arte não estão ligados, os dois repelem-se, é como a música popular e a música erudita: uma acha que… a música erudita pensa que a música popular é brejeira e a música popular acha que a música erudita é elitista, é muito de mis-en-scene e de coisas e de não sei o que, é tudo muita popa, muito rococó, não tem mensagem direta. E elas não se aliam, é muito raro aliarem-se até que aparecem estes compositores como o Lopes Graça que pega num malhão e põe o malhão a tocar revisitado numa opera e coisas assim… uma peça clássica! São raros estes momentos onde de repente um artista de mainstream, de entretenimento vá a buscar artistas que estão na crista da onda da provocação, porque isso não é unânime, então eles não se revezam, as pessoas… os artistas que estão no topo da nossa cadeia alimentar em Portugal, da arte… não viram a pirâmide ao contrário! Porque eu sinto que chega uma altura em que tu não consegues subir mais! Somos 10 milhões, não vais conseguir ser o Justin Bieber, somos 10 milhões… pronto! Chega uma altura em que o patamar não sobe mais, pronto! Temos aquele penico, pronto é aquilo! E a maneira de crescer é virar a pirâmide ao contrário, é de repente o gajo que chega lá encima, não tenho mais por onde ir… bora virar a pirâmide e ajudar os que estão em baixo, trazer os que estão de baixo e em Portugal isso não acontece! Quando acontece é para salvaguardar a generosidade da pessoa que está lá encima… olha eu a publicitar este artista miserável, que estava a tocar ali na rua! E… há um bocado esta coisa, tipo… os dois saem sempre reconhecidos, então entretenimento e a arte não se ligam! Por isto é que existe um espaço tão grande entre…. e um espaço quase… é um deserto e muito difícil de caminhar entre um e outro, entre pessoas como por exemplo o Fausto ou o Zé Mário Branco e o Quim Barreiros, ou podia dizer mesmo os Capitão Fausto, coisas mais de agora, mais contemporâneas! E existe espaço e não se… não há entreajuda entre eles, a canção é o denominador comum, mas não há entre ajuda, porque é como se uns fossem a… tivessem a competir uns com os outros. Então nós dentro da nossa classe somos inimigos de nós próprios, porque eu basta subir um bocadinho… tu vês, por exemplo, na cozinha fez-se uma greve de fome à porta da Assembleia, os chefes mais conhecidos… pode ter sido sensacionalista, mas fizeram! Achas que alguma vez a Mariza, ou o Agir, ou o António Zambujo, ou o Miguel Araújo, ou… estes artistas… entertainers que estão no topo de forma, no topo, no pináculo da pirâmide, da cadeia alimentar… não se vão sujeitar a isso, isso não é nada sensual, não é nada apelativo! Se bem que isso em Portugal já aconteceu quando a IURD quis comprar o Coliseu, o Pedro Abrunhosa e o Rui Reininho algemaram-se à porta do Coliseu! E isso eu acho que é de artista! Isso é uma coisa que eu acho que é de artista! Mas hoje em dia é tudo tão, parece ser tão… nós temos que ser unânimes, eu tenho que dizer coisas que o público gosta, porque o público na verdade é que é o artista hoje em dia! O público é que vai lá a cantar, a passar por uma boa experiência e soube ao palco e o artista até tem que dizer… há seis pessoas que fazem anos, é o aniversário daquelas pessoas… esta música vai para a Margarida que faz anos hoje! Então de repente a plateia está num lugar de destaque… e pronto eu sinto isso, sinto que a elite não ajuda ou não há mistura entre a elite da música e a malta que está a sobreviver da música!

Francesco: Ou seja não há união, representatividade… e união, uma voz unívoca! 

Márcio Silva: Não há!

Francesco: Grande Márcio! O teu contributo é muito valioso, umas perspetivas fantásticas e cada um, não é? Traz a sua! Tu trouxeste aqui vários pontos de reflexão muito interessantes. Queria terminar a nossa conversa pedindo se tens feito, ou se podes mencionar duas músicas, uma ou duas, vai! Que compuseste durante o período supracitado, ou seja desde Março 2020, mas também… pronto! Durante 2020, uma ou duas músicas que possamos aqui alegar à entrevista e se podes também comentá-las… e se quando elas estiverem prontas com um vídeo ou um mp3, possamos colocar aqui para o público ouvir…

Márcio Silva: …claro! Então dentro deste… como eu falei no início, dentro destas… deste grupo de coisas que eu fui fazendo na quarentena associadas a esta questão de diário, ou de… tentando elevar estes pequenos paradoxos da sociedade, apareceu esta canção que se chama “O efeito de uma asa de animal”, que é basicamente a falar da pandemia, ou de pequenas coisas que acontecem, que são estranhas. De repente rebenta uma pandemia e as pessoas saem de casa para buscar papel higiénico, não saem de casa para buscar mantimentos, comida, sei lá! Podiam ser gillettes… o engraçado é saber que é papel higiénico, as pessoas estão mais preocupadas com o que sai do que com o que entra… e isto é muito interessante!

Francesco: Fantástico!

Márcio Silva: E eu deparo-me sobre estas coisas e o “Efeito de uma asa de animal” fala sobre isso, não propriamente especificamente do papel higiénico… mas fala um bocado sobre esta coisa. E depois tem outra música chamada “É natural” que fala sobre esses… as nossas relações tem um costume táctil, eu chego e abraço-te! Isto é natural para mim! Não há outra forma de ser, mesmo quando é uma coisa super formal, eu tenho necessidade de tocar na outra pessoa quando chego! “Olá boa tarde como está?”. E de repente, na quarentena, havia situações… no início, existiram situações em que eu, por exemplo tinha que conhecer a mãe de alguém e ficamos os dois assim, tipo… “Bom dia como está?”… Será que vou, não vou, como é que é? oh! Olá, olá… isto é muito estranho! Para mim, não é? Que estou habituado… passei 30 anos a viver de uma maneira, a sentir de uma maneira de repente, põem-me noutro lugar? Então a canção fala um bocado sobre isso, fala sobre essa natureza que em dois ou três anos, deixou de ser natural! Não podemos cumprimentar ninguém, não podemos ir no metro, de repente toda a realidade da rua são pessoas de máscara, uma situação mega… que nós só víamos nos filmes de pós apocalíptico! Ruas desertas… de repente tu podes ir para a Avenida da Liberdade a sacar sons de passarinhos, coisa que nunca poderia ter acontecido outrora porque tinha carros e camiões e circulação de transito… pronto! Então as músicas, fechando um bocadinho… as músicas falam sobre essa… trazem um bocadinho este diário de alguém que está a reparar em coisas que outrora nunca tinham acontecido e… tem outras, mas eu acho que estas duas vou conseguir gravá-las…

Francesco: …vão fazer parte de um disco que vão sair em breve…? Mais ou menos?

Márcio Silva: Vão fazer parte de um disco que vai sair em breve, que tem uma temática, quer dizer “Ali é a nação”! Basicamente eu pus-me num lugar onde eu sou o observador, que a quarentena deu este lugar subjetivo a toda a gente: é como se tivéssemos encima de um morro, a ver a nação de fora e a podermos ser alguém que está no papel do narrador, que não é interveniente direto, não é uma personagem principal naquela história, mas estamos a ver de fora tudo o que está a acontecer, a ver as noticias a chegar: “hoje 500mil mortos! Hoje mais não sei o que…!”. Então todas aquelas coisas são ondas que nos afetam, mas que nós temos que estar passivos em casa a levar com….

Francesco: …a saber filtrar de alguma forma…

Márcio Silva: …filtrar, mas de repente a levar com aquelas vagas de informação e tentar fixarmos nos no mesmo sitio, com moral, com esperança, com crença, perseverança. Então as músicas falam um bocado sobre isso: é de por num ponto de vista de fora, a ver a nação ali… é a nação! E ao mesmo tempo, esse exercício é o trocadilho… é uma “alienação”: para eu conseguir ver de fora esta sociedade e por me num plano de um observador, eu tenho que me “alienar” deste costume de ter que sair: agora tenho um trabalho as 8h, agora… vou para casa, vou buscar o filho à escola, vamos a…! E esta coisa, para nós conseguirmos ver de fora, temos realmente que nos alienar! Então este foi um trocadilho que me fez… epá! Se calhar é por aqui que eu devia ir… era isto que eu devia fazer: arranjei um termo

que suprimia as necessidades, que é alguém que está fora a ver e que ao mesmo tempo tem que se alienar, foi obrigado a alienar-se para ver o mundo e pronto! Desta condição eu decidi escrever algumas canções… e acredito que eu vou conseguir acabá-las para depois passar aqui no teu programa!

Francesco: Perfeito! Maravilhoso! Muito obrigado Márcio, gracias mil! Foi uma entrevista fantástica…

Márcio Silva: …foi mais um monólogo!

Francesco: Não, foi muito interessante! Mais uma vez obrigado Márcio, és o maior! Obrigado!

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