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30.05.2022

Projeto Ágora: Entrevista com Rui Galveias (14/05/2021)

Radio Olisipo · PROJETO ÁGORA: RUI GALVEIAS

Rui Galveias, é guitarrista e compositor e reside em Lisboa. Colabora atualmente com vários projetos musicais, entre os quais se destaca o grupo El-Sur. É também produtor cultural, por gerir um dos novos lugares de referência para a música independente e as artes do espetáculo da cidade: o espaço cultural BOTA (Anjos). Além disso é coordenador do Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos CENA-STE.

Em resposta à situação de atual emergência devida à pandemia do COVID-19 e à necessidade de promover iniciativas que possam avaliar e atenuar o impacto no âmbito das artes performativas, investigar os efeitos da crise, com enfoque no sector da música, documentar as estratégias aplicadas pelos artistas nas suas atividades criativas e de performance, o Projeto Ágora convida Rui Galveias, para compreender os efeitos provocados pela crise sanitária, quer no nível individual, quer no âmbito do sector cultural em Portugal.

Francesco: Olá boa tarde Rui Galveias, obrigado por aceitares este convite aqui do Projeto Ágora para responder aqui a algumas das nossas perguntas e questões, podes te apresentar rapidamente?

Rui Galveias: Sou Rui Galveias, sou músico e artista plástico, tenho a minha vida essencialmente no universo da música e das artes plásticas onde trabalho. Sou também dirigente sindical do CENA-STE, o sindicato dos trabalhadores do espetáculo, das artes do espetáculo, do audiovisual e dos músicos e neste momento… é isto!

Francesco: É isto! Está ótimo! Eu gostava muito… exatamente de entrevistar-te seja enquanto músico e representante do sindicato e queria começar exatamente pela parte mais do performer músico: como é que viveste desde, já que passou mais de um ano, desde a pandemia e os vários confinamentos… como é que viveste como músico esta fase e qual foi o impacto real a nível financeiro na tua vida de performer?

Rui Galveias: A vida que nós tínhamos antes da pandemia já era uma vida muito precária, com muitas dificuldades, não é? Ou seja, a nível financeiro sempre foi difícil, sempre foi de procura constante de trabalho, de lutar muito com muitas dificuldades, fazer muitas coisas diferentes ao mesmo tempo, quer na área da produção, quer na área da criação, quer nos espetáculos. Com o confinamento e as consequências da pandemia, toda esta multiplicidade de trabalho, no trabalho que nós tínhamos… desapareceu! No meu caso em concreto, nós tínhamos num dos grupos que faço arte, que é o El Sur, nós tínhamos lançado um disco em Fevereiro, pronto! Diz tudo, não é? A data diz tudo, lançamos um disco em Fevereiro com uma lógica de lançamento relativamente bem pensada, com… bem preparada, mas… e ainda fizemos um conjunto de participações na televisão, na rádio, nestas coisas todas e programas que são relevantes para a divulgação do trabalho da música em Portugal, mas a partir do momento em que houve a suspensão da atividade… foi todo um processo muito difícil: os concertos reduziram-se brutalmente, eu fiz… até em comparação com outros músicos, acabo por me sentir privilegiado, porque fiz, salvo erro 6 espetáculos!

Francesco: Quantos?

Rui Galveias: 6 durante o ano de 2020, ou seja um com uma componente de vídeo e os outros espetáculos foram feitos no verão, foram estes 5 ou 6 espetáculos… 6 salvo erro, no total!

Francesco: Uma grande tournée!

Rui Galveias: Foi uma grande tournée, sim! Grande tournée de silêncio e ausência, não é? Dos palcos e do trabalho ativo, que nos inspira e que nos move, que é tocar e fazer o nosso trabalho preferencialmente ao vivo. Por outro lado, em 2021 a situação mantem-se parecida, não é? Houve agora um período mais intenso nas últimas semanas, portanto entre Abril e Maio, fruto também de uma vontade muito grande que os músicos têm de por as coisas cá fora, somada a algum espaço que apareceu finalmente! E também uma sensação que eu tenho… que as pessoas querem consumir, querem e precisam da música de uma maneira que nunca esperaram, ou seja sentimos isso e eu acho que sentimos isso nos espetáculos, uma intensidade parte a parte que… pronto! Que é bem vinda e que é importante. Posto isto, a minha vida enquanto músico se acalmou razoavelmente, nós vamos tentando sempre combater a paragem fazendo outras coisas, gravando e produzindo coisas novas e tudo mais! Por oposição a isso, o trabalho no sindicato intensificou-se brutalmente porque a dimensão na vida dos trabalhadores da cultura de uma forma geral, não só dos músicos mas dos trabalhadores da cultura em quase todas as áreas, foi de tal forma afetada por isto, não é? Que o sindicato não teve mãos a medir para tentar dar resposta e ajudar a combater os problemas que foram surgindo e a resolver, e a procurar contribuir para que os problemas que foram… que já existiam, que já cá estavam, estavam disfarçados pela nossa realidade especialmente fruto do turismo e de uma certa realidade que existia de que se tinha assumido como normal, ou seja quando essa… quando cai a pandemia, toda essa normalidade desaparece, não é? Epá! E é aí que tem sido… que a minha vida tem sido muito mais intensa! Ou seja, no envolvimento com este processo. Nós tínhamos cá os problemas antes, ou seja, nós tivemos sempre problemas de forte precariedade, de falta de consciência dos direitos enquanto produtores e agentes de cultura… produtores no sentido de criadores, de agente que cria conteúdos e que faz o material que é… que muitas vezes não é associado à ideia de trabalho, é associado a uma ideia de uma coisa abstrata, que aparece, não é? Quando nós sabemos que não… é um trabalho intenso que tem toda a legitimidade de qualquer outro trabalho e que merece a dignidade que qualquer outro trabalhador merece, não é? Eu acho que essa é a única nota positiva deste processo! É que de repente os trabalhadores da cultura fizeram saber, ou fez-se saber e conseguiu se fazer saber que os artistas também… os artistas e todos os trabalhadores que trabalham à volta da criação cultural e da produção cultural são trabalhadores que têm direitos, que têm direitos como as outras pessoas, podem sonhar com ter uma família, com ter uma vida normal e organizada e que para isto precisam de garantir direitos que outros trabalhadores têm e têm lutado muito para preservar, porque não tem sido fácil! Mas que hoje em dia… mas que esses direitos são legítimos e que devem conquistá-los e isto perante a nossa precariedade e a ideia de que a precariedade é o normal, é a única coisa positiva da pandemia.

Francesco: o que me interessa por exemplo saber, visto que tens lidado com muitos músicos ou também pessoas ligadas ao sector artístico, numa situação que permanece como é agora de 2021, de confinamentos e faltas de perspetivas, entrevistei muitas pessoas por exemplo que acharam em alguns momentos a necessidade de mudar de trabalho… de deixar isto para ir fazer outras coisas, outras pessoas têm uma espécie de faltas de perspetivas… o que é que vai ser? Portanto no geral me interessa saber o que é que os músicos… como é que se podem organizar, como é que podem tipo, tentar abordar o futuro tentando manter-se ativos neste campo…

Rui Galveias: …sim! Esta é uma das questões que surgiu neste período, foi a possibilidade de abandonar este trabalho por outro. O problema é que o confinamento também limitou todos os outros trabalhos, não é? Se calhar, até um certo ponto, ainda bem porque obriga a que as pessoas se mantenham naquilo que são as suas escolhas de vida, não é? E como é que os trabalhadores podem garantir esta legitimidade e os artistas podem garantir esta… os artistas são trabalhadores, como é óbvio… como é que podem garantir esta legitimidade e este futuro? É tomando consciência dos seus direitos! Porque nós, a conclusão a que chegamos era uma conclusão que já existia… a que já tínhamos chegado antes no sindicato, era que em 80 ou 90 % dos casos, se a lei do trabalho que existe em Portugal fosse comprida em quase todas as relações laborais que existem, muitas destas pessoas não teriam ficado nesta situação, ou seja: é óbvio que há exceções, é óbvio que há de facto trabalhadores independentes que são trabalhadores independentes e isso é um problema que choca com a nossa frágil legislação, por causa… o recibo verde é uma invenção para os advogados e para os médicos que tinham um consultório privado, ou seja, não era uma ferramenta para outro tipo de trabalho ou qualquer outro tipo de trabalho! E é óbvio que o trabalhador independente, o artista que é um criador e que está em casa, está a escrever um livro, está a fazer o seu próprio disco, está a fazer o seu trabalho, no seu tempo, nas suas regras, na sua lógica, precisa também de ter acesso a direitos, precisa de conquistar o seu próprio espaço, como ter proteção social, ter essa… precisa ter os direitos plenos que qualquer habitante deste país tem. Mas o problema é que o 90% dos trabalhadores, nós não temos a certeza porque o mapeamento que era preciso fazer, o Ministério da Cultura vai adiando… são trabalhadores subordinados, mesmo um freelancer, que tem legitimidade para ser freelancer, um técnico de som, por exemplo… é freelancer mas é um trabalhador subordinado, o que quer dizer que ele devia ter um contrato de trabalho, mesmo que fosse por um dia, mesmo que fosse por horas… e o acesso a este contrato de trabalho teria lhe permitido ter uma contribuição para a Segurança Social, para ter uma carreira contributiva lógica… ah! Diz: ah! Os trabalhadores independentes através dos recibos verdes também podem fazer descontos e também teriam alguma proteção! Pois! Mas a lógica… a lógica e a proteção que existe no contrato de trabalho e o valor das contribuições é completamente diferente do recibo verde e naturalmente esta proteção é maior por um contrato de trabalho, não descorando que o trabalhador independente devia ter mais proteção, há um aspecto fundamental que é: o que é a Segurança Social e a importância que ela tem? A Segurança Social é uma figura absolutamente uniforme, que procura cuidar de todos os que tem dificuldade, com a contribuição dos que estão bem e dos que estão muito bem. Se toda a gente contribuir seriamente para a Segurança Social, o apoio da Segurança Social é possível para todas as pessoas que estão em situações diferentes e em momentos diferentes das suas vidas, por exemplo na reforma, ou por exemplo numa situação de sem emprego, ou numa situação de doença, não é? É por isto que a Segurança Social serve e essa lógica solidaria e universal da segurança social tem que ser preservada através dos nossos descontos. O problema aqui, é óbvio que bate um conceito que se criou de que eu quero ser independente e um contrato tira-me a independência, é um conceito falso! Porque é uma ilusão, um contrato é a única coisa que me dá a garantia que eu vou receber o meu dinheiro e que estou protegido por uma figura contratual e que se o… por exemplo: se eu fizer uma peça para uma companhia de dança, para uma companhia de teatro e ao fim de um mês ele dizer, ah! Afinal eu quero outra coisa… se tiveres um contrato de trabalho, estas protegido e estiveste a criar descansado porque sabes que no final do mês vais receber! Se estiveres a espera do final do mês para passar um recibo verde, ele pode eventualmente nem sequer querer saber de ti para nada e dizer que não era nada do que ele queria, embora haja formas legais de combater isto e é possível através de algumas figuras legais ultrapassar algumas destas questões, por exemplo através de uma troca de emails, que pode ser que seja validada como uma negociação, não é? Epá! É óbvio que não é o mesmo nível de proteção, isto é um aspecto! O contrato garante essa lealdade parte a parte, no sentido em que há uma proteção de facto e esse… e essa proteção é assumida e estes valores são descontados para efeitos da Segurança Social. Mas há um problema aqui que é o problema dos baixos salários e dos baixos valores, ou seja, quando tu tens no sector em Portugal, baixíssimos caches, o que acontece é que naturalmente um trabalhador independente ou um trabalhador em situação de freelancer, ou um trabalhador subordinado mas que está em pequenos contratos de meses, quando olha para o valor que tem na mão e para o cache que recebe e é confrontado pela entidade patronal, que diz: eu só tenho este dinheiro para ti, se tu quiseres eu faço-te um contrato, mas sai desse dinheiro… ele olha para o dinheiro que vai meter para o bolso e percebe que o dinheiro não vai chegar ao fim do mês, não é? E como percebe que o dinheiro não vai chegar ao fim do mês, opta pela situação e acaba por pactuar com a ilegalidade, não é porque queira, não é? No limite, o que aconteceu em Portugal nos últimos 20 anos, é que as pessoas tentaram manter-se nesta lógica que lhes foi imposta por uma espécie de “babilónia da contratação” que é o recibo verde e acabaram muitas vezes por se endividar de tal forma à Segurança Social porque os pagamentos eram regulares e os recebimento dos caches, portanto o incoming não! Ficaram numa situação em que foram empurrados muitas vezes até para a informalidade, no limite já… não ter qualquer relação com o Estado! Isto não é culpa da malta! Pode haver uma exceção, pode haver meia dúzia de pessoas que sonham com um Estado anarquista, em que não há Estado, ok! Não é? Uma lógica de sociedade, uma sociedade em que não há Estado, ok tudo bem! Mas a maioria das pessoas não escolheram isto, tiveram… foram empurradas para isto, porque o dinheiro não lhes permite estabilidade e a forma como o sector funciona em Portugal não lhes da estabilidade, epá! E o resultado foi, quando caiu a pandemia e todos os ganchos, todos os trabalhos que iam existindo e pequenas coisas que se iam fazendo para sobreviver desaparecem e de repente estamos todos na merda! Estamos todos numa situação dramática! Epá, o que é que os trabalhadores deviam fazer? Tomar consciência dos seus direitos, devem se organizar… nós entendemos o sindicato… que a melhor forma de estar organizados é no sindicato, sendo sindicalizados naturalmente e achamos que… há uma coisa que nós defendemos sempre: se houver só um violinista no sindicato, o violinista não era uma figura menor no sindicato, enquanto trabalhador sindicalizado, passaria a ter a força de todos os outros que estão sindicalizados e nós, no CENA-STE,  temos muitas frentes das artes do espetáculo em Portugal e do audiovisual também, sabemos que aquele violinista que sozinho, que estaria sindicalizado, pronto! Há mais do que um, felizmente…

mas sozinho teria a força dos atores, dos outros músicos e das outras áreas profissionais, porque o combate é comum e aquilo que é preciso garantir aos trabalhadores da cultura de uma forma geral é com… mesmo especificidades que é… a conversa que se tem falado muito sobre a questão do Estatuto, este Estatuto do Trabalhador do espetáculo, do profissional da cultura, do intermitente e estas coisas todas. Mesmo nestas questões, que são questões que estão… que deveriam ser especializadas, ou seja: o que nós entendemos no sindicato é que deveria haver, não um Estatuto, mas um conjunto de Estatutos que resolvem problemas específicos de cada profissional, já temos um ainda muito frágil que é o do bailarino, por exemplo, mas tal como o do bailarino há o do pescador… porque um músico de orquestra não é a mesma coisa que um ator e um operador de câmara não é a mesma coisa que um técnico de som. Têm especificidades diferentes e espetar acerca de 150 profissões dentro de um Estatuto, ou Estatutos que  têm o tamanho do código de trabalho, ou então… não faz qualquer sentido, não é? Porque as especificidades não são contempladas e os Estatutos têm a ver com as especificidades e não com as generalidades, pronto! Estas frentes de direitos que nós temos de conquistar, da tomada de consciência que o trabalho independente muitas vezes é uma fraude, é mentira… que os caches deviam ser diferentes, que se calhar deveríamos trabalhar para garantir que temos tabelas dignas e trabalharmos todos nisto, são várias razões para os artistas e para os profissionais da cultura se organizarem e estarem connosco, estarem com o sindicato. Mas isto é um… isto é infinito…

Francesco: …infinito!

Rui Galveias: Porque há neste momento uma série de coisas que foram colocadas cá fora, que nos… que é a propósito do conceito do trabalho e da ideia de trabalho na cultura, que nos abrem sempre mais perspetivas e mais pontos

e mais aspectos que eu acho que era importante a malta… e que é bom para a malta que queira estar organizada e que tenha… que queira ter consciência dos seus direitos, primeiro… mesmo que não esteja… consciência dos seus direitos, não é? Que tem vindo a surgir esta discussão do Estatuto, que não é o Estatuto que queremos… que está… foi aprovado há pouco tempo, abre coisas muito interessantes, abre uma coisa… coisas muito simples, por exemplo: porque é que nós não estamos de acordo com este? Porque ele substitui o código de trabalho em alguns aspectos e ao substituir o código de trabalho, afasta-nos da realidade dos outros trabalhadores, como se nós estivéssemos numa cúpula e fossemos uma espécie de seres paralelos à realidade, epá! E nós não somos uma série de… não somos seres para além da realidade. O nosso trabalho, para alguns de nós, não para todas as profissões na cultura é noturno, por exemplo: há uma parte do nosso trabalho que é ao fim de semana e é noturno. Nós, o conceito de trabalho noturno e de fim de semana que existe no trabalho extraordinário, ou em horários extraordinários ou fora das horas ditas e convencionadas pela sociedade como horário convencional, é um trabalho normal para nós… mas o problema é que o nosso contexto de trabalho enquanto pessoas que vivem numa sociedade, é um contexto igual há dos outros… ou seja, está ligado à vida, está ligado às outras pessoas todas. Estas dimensões que foram surgindo na discussão do trabalho na cultura, que foi muito intensa no último ano… é a coisa positiva de discutirmos o Estatuto para o Trabalhador, discuti-lo seriamente e eu acho que da parte do sindicato e das outras organizações que estiveram envolvidas na discussão. A discussão foi séria, no caso do governo tenho muitas dúvidas, porque no final nós temos uma coisa que não mudou assim tanto em relação a aquilo que eles apresentaram antes, mas há um conjunto de aspectos que nós entendemos nas nossas profissões, como aspectos que nós distinguem pela questão do trabalho noturno, do trabalho ao fim de semana, que fazem com que nós sejamos considerados uma espécie de entidade à parte, que vive num limbo e não é essa a razão! Existe um conceito de trabalho noturno e o conceito de trabalho ao fim de semana, este conceito existe no código de trabalho…

Francesco: …se bem que isso, ou seja… não é contabilizado todo o tempo que nós trabalhamos para os ensaios que são diurnos…

Rui Galveias: …pois! Também!

Francesco: E da preparação conceitual e física, mesmo, não é?

Rui Galveias: Sim! Esta é a nossa especificidade e é a tal especificidade que devia estar considerada no Estatuto, não é? O nosso trabalho, a forma como o nosso trabalho é construído, de uma grande parte de nós, mesmo a formação e quando eu aponto isto aponto também o conjunto de profissionais, porque falando dos músicos, este campo dos ensaios e do tempo que não existe no palco e que está por trás de todo o nosso trabalho que às vezes é de anos, não é? Este conceito teria de ser considerado e teria que passar a existir num Estatuto por exemplo para os músicos, não é? Com as diferenças com os músicos clássicos, os músicos de pop rock ou da música popular de uma forma geral, não é? Mas depois… e isso é uma especificidade. Já o trabalho noturno não é uma especificidade: é uma característica da nossa profissão, é um horário… epá! De uma forma muito simples, tal como os trabalhadores do lixo… nós trabalhamos à noite e eles também! E o trabalho deles tem uma série de regalias por ser feito à noite e essas regalias, são regalias que nós temos de ter direito porque o conceito de trabalho noturno não pode ser normalizado, como se… ok! Nós, a nossa normalidade é o trabalho noturno… não é uma normalidade! É uma excepcionalidade e o facto de ser uma excepcionalidade deveria fazer com que os valores que são pagos porque se está a trabalhar à noite deveriam ser logo garantidos, porque são diferentes de um trabalho diurno, não é? Tu trabalhas ao fim de semana, eu pago de uma maneira diferente, porque se eu tiver um filho e eu tive filhos… agora já são crescidos felizmente, mas tenho amigos que têm filhos que os têm que levar de manhã para a escola, porque não há uma escola para os músicos, não é? Os filhos dos músicos não vão para uma escola e é que sai as 3 da manhã de casa quando o pai sai do trabalho e vai… ou chega finalmente a casa e pode ir buscar os miúdos e estar com eles até as 6 da manhã e os miúdos depois vão se deitar… portanto, não é esta a realidade! A realidade da vida das pessoas é dentro de uma lógica de 7 dias por semana, uma semana em que se valorizou com uma luta duríssima, desde o século XIX das 8 horas de trabalho, 8 horas de descanso e 8 horas para fazer o que se quiser e essa lógica faz com que o trabalho diurno é trabalho diurno, o trabalho noturno é trabalho noturno, o trabalho extraordinário é trabalho extraordinário e isso tem a ver com a proteção ao lado fraco que é quem trabalha, quem é subordinado a uma entidade qualquer. No nosso caso, mesmo como independentes, se nós tivermos consciência disto, é importante para percebermos a importância de defender por exemplo os caches mais justos, valore mais corretos, fazer compreender o peso do trabalho nas artes que é uma coisa que eu acho que a sociedade começou a compreender com este ano de pandemia e que muitas vezes não compreende, vê o resultado final, fica encantada mas depois todas aquelas anedotas que nós conhecemos: “ok! És músico mas trabalhas em que?”… nós já as sabemos todas, já as discutimos, mas elas não deixam de ser atuais, infelizmente mantém-se, não é? Há chavões que nunca desaparecem! E esta coisa do Estatuto dos Trabalhadores do Espetáculo ou do profissional da cultura… porque isto também é outro um problema que existe naquele conceito porque aquilo pretendia meter tanta gente e depois percebeu que se tinha esquecido… sei lá, dos artistas plásticos… então e de repente, então e estes? Quer dizer, é revelador da forma como foi mal pensado… são coisas que o Estatuto não pode substituir ao código de trabalho, porque e o código de trabalho é a base do trabalho para todos e forma como todos somos protegidos e essa base é que nos garante que podemos comparar a nossa realidade com a dos outros, mantendo a mesma balança, porque se formos para balanças diferentes, o risco que temos de ficarmos numa balança que é profundamente desequilibrada para nós, que é aquela em que vivemos à conta da precariedade, não é? Porque a precariedade desfez  a balança, o que é que a precariedade fez? Afastou-nos de uma lógica de proteção, que a nossa Constituição defende, que é a defesa de quem trabalha previu… a Constituição Portuguesa defende quem trabalha, contra quem domina os meios de produção, esta parece uma coisa assim mais de… uma coisa que parece ideológica e é ideológica… não há nada a fazer! É ideológico e é político… e político não quer dizer partidário, as nossas decisões de vida são sempre politicas, não é? E essa ligação é aquilo que a gente precisa de recuperar, a ligação aos nossos direitos enquanto trabalhadores da cultura, é a ligação aos direitos dos outros trabalhadores todos. Essa dimensão é fundamental para nós nos defendermos melhor e depois a consciência das nossas diferenças, é fundamental para desenvolvermos os nossos… os direitos e a defesa dos nossos… da nossa especificidade, mas isto é um passo acima… é um passo à frente, que é muito importante, não é? Nós voltamos a falar por exemplo, dos ensaios, o trabalho intelectual que é feito fora dos olhares de toda a gente, mesmo um músico de orquestra, trabalha fora da orquestra, não trabalha só na orquestra, não consegue ensaiar só na orquestra, tem que manter… para se manter em forma, ui! Não é? E isto aplica-se a muitas profissões, pois há profissões que são diferentes. Os operadores de câmara, por exemplo são sujeitos a horários e a pressões imensas por causa dos timings de produção que existem e foram habituados a esta lógica e é preciso compreender que nas suas profissões, a componente física que tem e as características que tem são diferentes por exemplo dos maquinistas de cinema, não é? E por ai fora… ou seja, todas as profissões têm estas especificidades mas elas são uma a uma, não existe um Estatuto Geral da Cultura que põe um artista plástico ao lado de um violinista, não faz sentido, não é a mesma… a única coisa que existe em comum é o facto de haver uma componente intelectual no trabalho, não é? E estas especificidades é que não existem no tal do Estatuto. Agora, as generalidades que nós precisamos que sejam adoptadas, nós precisamos de generalidades, precisamos que na generalidade o trabalho noturno é trabalho noturno e nós precisamos de ser protegidos nisto, na generalidade o nosso trabalho, quando estamos a trabalhar para alguém e cumprimos um horário e… ou usamos um equipamento desta pessoa, ou trabalhamos para uma companhia de teatro e eles definiram o local de ensaio, o período, quando é que o espetáculo acontece, ou seja: isto são características de trabalho subordinado e isto vem da generalidade, não vem da especificidade. Primeiro temos que ganhar a generalidade e depois imos à especificidade e uma coisa não invalida a outra, não estou a dizer que devemos adiar um Estatuto do Trabalhador da Cultura ou um conjunto de Estatutos, não devemos adiá-los, estamos a discuti-lo e queremos discuti-lo… não pode é ser apresentado como foi, como uma medida de emergência perante a situação dramática que as pessoas vivem, aliás serviu para nós distrair das medidas de emergência que não foram tomadas com seriedade e com a dimensão que mereciam. Nós vemos muita gente com muitas dificuldades…. mesmo os que receberam aqueles apoios de miséria, não é? A meia dúzia que receberam, com muita dificuldade em receber este dinheiro, com muitos atrasos, porque o Ministério da Cultura está subdimensionado e depois pode-se dizer: ah! Mesmo quem olhe de uma forma mais liberal para o mundo do trabalho e para a cultura, mesmo olhando desta forma o dimensionamento do Ministério da Cultura, até nesta perspetiva, não pode ser este, tem que ser substancialmente diferente, tem que ter outro financiamento, tem que ter mais gente, tem que ter uma capacidade de intervenção muito maior e no caso, o Ministério da Cultura substituiu-se ao Ministério do Trabalho nos apoios, porque os apoios… ok! É um esforço extra do Ministério da Cultura para fazer… epá! Mas depois não pode fazer um esforço que é um esforço virado para a Câmara, virado para a propaganda, porque foi propaganda, não é? O dinheiro foi para… há dinheiro para fazer aqueles apoios, foi garantido no orçamento do Estado que este dinheiro existe, é um facto! Mas depois transformaram aquilo numa medida de propaganda, apresentada por exemplo no verão passado com os resultados que conhecemos, os poucos… e apresentados em Janeiro de 2021 com resultados desastrosos, não é? Em que as medidas são apresentadas sucessivamente, mas o dinheiro é sempre o mesmo… nunca chegou às pessoas! E ainda dá para ver onde é que anda este dinheiro, que este dinheiro nunca mais chega e ele está cativado no orçamento do Estado para isto, portanto… é mesmo uma má gestão e esta má gestão tem toda a ver com a escala do Ministério da Cultura e a importância que teria ter um Ministério da Cultura diferente… por exemplo, que garantisse que através dos apoios que dá às companhias independentes que são apoiadas pela DGArtes e a todo os universos de artistas que é apoiado pela DGArtes, o dinheiro que dá e que garante às fundações que são apoiadas pelo governo, não é? A Casa da Música, SerralvesCCB e por aí fora… ou seja, que estes cumprissem a lei e que nos trabalhos subordinados que têm, deixassem finalmente de ter recibos verdes, nunca mais terem recibos verdes e passar a ter um contrato de trabalho, porque não há problema! É possível uma pessoa ter um contrato de trabalho, mesmo que seja a termo, mesmo que seja para um período muito curto é um mito a ideia que o contrato de trabalho é muito difícil de conseguir, que dá muito trabalho e…

Francesco: …ou despesas extras…

Rui Galveias: …e o argumento que.. ah! Mas eu preciso dele amanhã, epá! Mas em geral as coisas são planeadas com meses de antecedência, não é por causa de um dia a tratar de 3 ou 4 na Segurança Social, que são enviados para… 3 ou 4 números da Segurança Social que são enviados para a Segurança Social, são colocados no site a dizer este trabalhador está aqui a trabalhar neste período, não é por aí que é impossível fazer, isto! Há alterações que era preciso fazer nos contratos, há coisas que eram preciso melhorar por causa de algumas exceções.

Em situações de conflito laboral e para ser representado pelo sindicato, tem que estar sindicalizado, ter as quotas em dia para poder ter acesso ao apoio jurídico que nós temos e que funciona muito bem e que tem crescido também porque temos cada vez mais sócios e o facto de termos mais sócios…

Francesco: …está aumentando o numero?

Rui Galveias: Aumentou substancialmente, a história do CENA-STE é engraçada porque era um dois sindicatos que estavam com dificuldades em sobreviver porque dependem diretamente dos sócios, os sindicatos em Portugal apesar de uma tentativa que houve uns… sindicatos com um universo sindical que nós não temos nada a ver felizmente, de uma espécie de financiamento europeu e uma lógica de financiamento que existe em outros países. Em Portugal os sindicatos são completamente independentes e autónomos, dependem completamente das quotas dos sócios, ou seja, nós somos aquilo que os sócios quiserem e somos o que os trabalhadores quiserem, se tivermos poucos trabalhadores e poucos sócios temos pouca força, se tivermos muitos trabalhadores a pagar as quotas, com capacidade para se manter numa relação normal com o sindicato, embora por exemplo neste caso, neste período agora tivemos… facilitamos porque entendemos que as pessoas estavam sem trabalho, isto era o mínimo que podíamos fazer é com esta força que o sindicato tem mais força, não há nada a fazer! E isso é uma possibilidade, ou seja recorrer ao apoio jurídico e ao sindicato quando se é sócio. Quando não se é sócio há sempre um tribunal de trabalho, mas eu acho que o melhor é ser sócio do sindicato e recorrer ao sindicato sempre que possível… nas relações laborais, acho que é… porque é uma defesa entre pares, são os pares que te defendem, mas os pares não estão condicionados! Uma comissão de trabalhadores que tem um papel útil dentro de uma empresa, ou uma estrutura, quando pensamos em companhias grandes ou em por exemplo… na Opart ou na Casa da Música que tem comissões de trabalhadores, é óbvio que a comissão dos trabalhadores é útil. Mas um trabalhador que está dentro de uma empresa não tem a mesma capacidade para se defender de quando tem uma estrutura externa que o defende e que é feita pelos seus pares, não é? Pelos seus colegas, pelos seus companheiros de trabalhos, pelos camaradas. Esta relação é que permite que muitas vezes alguém seja devidamente a ser defendido sem estar a ser posto em causa, porque não é uma relação entre iguais! Uma relação subordinada tem no limite tem sempre um patrão e um empregado para todos os efeitos, mesmo nas companhias mais pequenas, mais… de maior intimidade em que as pessoas são praticamente iguais e eu sei que no nosso tecido existe gente muito boa que dirige companhias e tem pequenas companhias que são maravilhosas, mas há um momento… aquele momento da decisão final do espetáculo, em que é uma decisão às vezes até criativa, há um momento que quem manda é quem manda… não há nada a fazer! Não é? Quem manda é quem manda e isto é trabalho subordinado, não estamos sempre entre iguais! E para isto é que o sindicato pode ser fundamental, porque cria uma distância, afasta a componente pessoal que existe entre um trabalhador e um patrão, que muitas vezes está condicionada por esta relação próxima e depois é a consciência de classe, a consciência de pertencer a um coletivo maior que te defende e com quem estás junto pelas mesmas razões, que é garantir que o teu trabalho e o trabalho dos teus, dos teus amigos e das pessoas que estão contigo é melhor! Eu dou um exemplo: se nós defendêssemos todos… se tivéssemos capacidade e os sindicatos tentaram isso, no caso daquela situação no Sul de Portugal com os imigrantes que estão a trabalhar nas estufas, lá em baixo… se toda a gente os proteger, está a proteger os seus próprios interesses e está a proteger aquelas pessoas e aquilo já não acontece. Ou seja, nós só nos defendemos melhor se defendermos os lados mais fracos e nunca ao contrário, não é… porque este conflito é absolutamente errado! Nós temos que nós defender unindo-nos na base do que é que é.. lá de baixo, porque nós somos de lá de baixo, não há nada a fazer… somos de lá de baixo! E estamos exatamente ao nível dos imigrantes que foram para que vieram da Asia à procura de uma vida um bocadinho melhor aqui, que estão exatamente ao nível dos imigrantes que foram de aqui para a França viver exatamente as mesmas condições em França nos anos 1950 e 1960 e essa relação e… por exemplo: foi fundamental em França garantir que estes imigrantes fossem envolvidos em lutas sindicais, para todos terem mais direitos, porque se não funcionava ao contrário, não é? E é um bocado isso que a gente tem que ver… nós estamos no limite da base mais baixa de isto tudo, estamos todos ao mesmo nível, o nosso trabalho que é mágico, que é… que tem uma dimensão que eu acho que é superlativa na nossa sociedade, não deixa de ter a palavra trabalho associada e naquilo que é a palavra “trabalho”, estamos na base como os outros!

Francesco: muito obrigado Rui por este contributo super valioso vai ser útil para muitas pessoas e até para mim, que estou ouvindo e já te ouvi falar em outras ocasiões, é muito importante para as pessoas interessadas, não é? Chegar a estes conhecimentos e saber que há possibilidades e perspetivas neste campo. Para voltar só à tua atividade de músico, se quiseres nós indicar uma música que tenhas produzido neste período, para podermos alegar aqui à entrevista e poderem te escutar… uma ou duas músicas e comenta, por favor!

Rui Galveias: Sim! O “Quantos é que nós somos?” claramente… foi feito depois do… foi feito durante o mês de Abril de 2020…

Francesco: …como é que se chama?

Rui Galveias: “Quantos é que nós somos?”, que foi um tema que nós convidamos… El Sur, foi feito com “El Sur” e convidamos o LBC Soldjah, é um tema do Zé Mário Branco, nós fizemos uma versão e que diz tudo… quanto é que nós somos? Eu acho que tem tudo a ver como o que estivemos a falar agora e com aquilo que é o momento que vivemos, recomendo vivamente… acho que é um objeto muito bonito, até visualmente e o teledisco foi feito e a canção é incrível!

Francesco: Encontra-se…

Rui Galveias: …encontra-se na página de El Sur, o link é http://www.elsur.com.pt, ou nas redes sociais procurando El Sur, e no Spotify também se encontra é sempre .pt para se encontrar porque há mais do que um El Sur, mas há muitos Suis… Suis? Suls? Não sei… não sei como é que se diz o plural de Sul..

Francesco: …suis? Sules… não…!

Rui Galveias: Suis, Sules… não sei! Mas são muitos, o Sul é muita coisa e eu acho que “Quantos é que nós somos?” é um tema incrível, porque faz esta pergunta: é um tema que foi criado num contexto pós PREC, não é? Do Período Revolucionário em Curso do 25 de Abril, mas que… a pergunta é esta: quantos somos? Quantos é que estão aqui de facto, para conseguir mudar as coisas?

E é uma pergunta que fazemos sempre, não é? Quantos é que somos? Quanto… quando nós temos que avançar com uma situação em que temos que ir para a rua e exigir alguma coisa, temos que ir para a administração de uma empresa, por exemplo quando o sindicato exigir alguma coisa, quantos é que nós somos? Temos força para isto? E este tema é ótimo para isto!

Francesco: Ótimo! Muito obrigado Rui!

Rui Galveias: Obrigado eu!

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