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10.05.2022

Projeto Ágora: Entrevista com Sérgio Milhano (15/04/2021)

Radio Olisipo · PROJETO ÁGORA: SÉRGIO MILHANO

Sérgio Milhano estudou na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo do Porto. Tem trabalhado em diversos projetos ligados ao teatro, à dança, à música e ao cinema. Na música destaca-se a sua colaboração com grupos como Deolinda, Ana Moura, Aline Frazão, Lura, Tcheka, Mafalda Arnauth, Melech Mechaya, entre outros. Foi coordenador de audiovisuais do Maria Matos Teatro Municipal até Outubro de 2007 e atualmente trabalha com o Teatro O Bando e com a Companhia Olga Roriz. Em 2009 fundou a Pontozurca, criando uma editora discográfica, um estúdio de gravação e uma estrutura de produção e direção técnica nas várias áreas das artes performativas. Em 2018 complementa a estrutura da Pontozurca, abrindo a Drogaria Central Loja de Discos (Almada).

Em resposta à situação de atual emergência devida à pandemia do COVID-19 e à necessidade de promover iniciativas que possam avaliar e atenuar o impacto no âmbito das artes performativas, investigar os efeitos da crise, com enfoque no sector da música, documentar as estratégias aplicadas pelos artistas nas suas atividades criativas e de performance, o Projeto Ágora convida Sérgio Milhano, para compreender os efeitos provocados pela crise sanitária, quer no nível individual, quer no âmbito do sector cultural em Portugal.

Francesco: Boa tarde grande Sérgio, obrigado por ter aceite este convite de falar aqui nestas conversas Ágora e estou muito contente de verdade estou seguro que o teu contributo vai ser muito útil, podes te apresentar se quiseres…

Sérgio Milhano: ok, obrigado eu pelo convite! Pronto, o meu nome é Sérgio Milhano, sou técnico de som, produtor, trabalho com música, com dança, com teatro, sempre na área do som, fundei a Ponto Zurca acerca de 12 anos, que é um estudo profissional de gravação e mistura de som. É também uma editora discográfica e pronto! E agora há três anos iniciamos um projeto numa loja de discos, também em Almada, chamada Drogaria Central e pronto acho que é… por estas coisas todas, que te lembraste de mim, não é? De fazer estas perguntas…

Francesco: …sim! Sobretudo porque lidas com muitos músicos, muitas bandas e deves ter uma visão geral do panorama, mais ampla provavelmente de muitos outros músicos que tocam em 2/3/4 projetos… lidas com muitas pessoas!

Sérgio Milhano: Sim! Exato, se calhar estou nesta posição, não é privilegiada, mas é diferente de um músico, não é? Porque trabalho com muitos projetos diferentes e no meu caso concreto pode ser útil a minha experiência, no sentido que eu trabalho não só com música, mas trabalho também muito com teatro e com a dança contemporânea, assim também um pezinho às vezes a fazer uma coisa de cinema, ou teatro, ou televisão, mas com teatro e com música trabalho, com teatro música e dança trabalho mesmo quase na mesma proporção…

Francesco: …ok, exato!

Sérgio Milhano: Por tanto isto pode ajudar a dar uma visão mais alargada do…

Francesco: …então, exato! Vamos tentar abordar a questão de um ponto de vista geral e se puderes também reduzir ao teu caso individual, enquanto digamos assim gerente de um estudo de gravação, queria saber o impacto financeiro desta pandemia desde o princípio, desde Março 2020, foi devastador imagino… ou se puderes comentar um bocadinho isso…

Sérgio Milhano: …sim! Foi um impacto…. sim! Foi mesmo, um forte impacto negativo não só ao nível do estúdio, mas principalmente ao nível da atividade que eu enquanto técnico e o estúdio enquanto direção técnica de um rol grande ainda de projetos, de repente… um ano que… ainda por cima, isto é uma… falo com várias pessoas e já tive esta conversa e acho que até, não é só na área da música, é em vária áreas. Portugal vivia uns tempos muito de esperança e de… havia muito turismo e havia muita coisa a acontecer em Portugal e havia… falava-se e falava com várias pessoas e toda a gente achava que 2020 ia ser um ano de record, íamos trabalhar imenso, havia imensos… por exemplo na minha área, havia imensos festivais de música, de teatro, o estúdio estava super bem… os calendários do estúdio estavam super ocupados, eu tinha imensos colaboradores a trabalhar comigo já, por causa da divisão de trabalho, porque na Ponto Zurca somos dois, temos um produtor também residente que é o João, mas pronto somo três pessoas basicamente que trabalham aqui diariamente no estúdio, mas havia trabalho para muito mais, portanto isto estava… assim… era assim um… estava muito interessante o trabalho aqui e de repente, pronto! Com o lockdown parou tudo, sem… o início foi assustador! Eu lembro-me que… acho que foi eu… foi toda a gente, tu nem sabias muito bem, tu não conseguias raciocinar, não é? Tu não conseguias perceber… ok! Isto vai durar 15 dias, isto vai durar 15 meses, isto vai durar 15 anos? Quer dizer, ainda ninguém sabe, não é? Mas então no início, havia assim… eu pelo menos, no meu caso senti isso: havia assim uma certa… quase impotência de raciocinar e tomar decisões, porque foi tão repentino e foi tão drástico, que foi… eu lembro-me que tive um dos melhores Fevereiros da minha vida, em termos de trabalho e graças a este ótimo Fevereiro, eu tive capacidade de não desesperar financeiramente logo em Março, logo no primeiro mês de paragem. E então lembro-me perfeitamente de dizer, epá fogo! Felizmente tive… fiz uma tournée com a Ana Moura em França de algumas 10 datas, fui substituir um colega meu e fiz por ai umas 6 datas de Dead Combo… neste mês de Fevereiro e ainda trabalhei no estúdio, portanto se pensarmos que o mês de Fevereiro tem 28 dias, eu com 10 mais 6, são logo 16 dias de trabalho bom! E depois ainda fiz umas coisinhas no estúdio e tinha o estúdio a trabalhar com outras pessoas, portanto foi de facto um mês de Fevereiro muito bom! Isto para dizer… mas depois tinha imensas atividades que eu começava, projetos de teatro, de dança, concertos, gravações no estúdio, de repente ficou tudo… pronto! Como já é sabido e como toda a gente já deve dizer, ficou tudo parado! Pronto, financeiramente foi um susto muito grande, que está a ser ainda… depois começaram a sair os apoios, os… e pronto! Qua ainda… toda esta política dos apoios, não vou dizer que é confusa, mas é… mas não tem chegado acho eu de maneira… as coisas não acontecem da maneira que é anunciada, portanto quem vê as noticias acha: ok! Está a chegar imenso dinheiro à cultura! Ok, as câmaras estão a pagar 50% dos concertos adiados! Mas isto não é regra, existem no meu caso concreto, posso dizer que foram mais as exceções do que as regras, portanto foram mais os concertos que foram adiados ou cancelados e que eu não recebi nada do que propriamente os que eu recebi aliás, acho que tenho dedos na mão para contar os que recebi, até acho que numa mão só consigo contar todos os que recebi e posso dizer que perdi… eu na altura fiz a contagem, portanto de Março até Setembro [2020], porque se pensava que o primeiro lockdown maior seria até Setembro, eu tinha acerca de 80 datas canceladas, portanto essas datas… destas 80 posso dizer que devo ter feito por aí umas 8 ou 10, que já foram reagendadas e que foram naquele período em que se conseguia trabalhar…

Francesco: …que foi Julho, Agosto… não…

Sérgio Milhano: …foi Setembro e Outubro, eu lembro-me que ainda fiz… por exemplo no caso da dança, ainda conseguimos repor por ai uns 4/5 espetáculos da Olga Roriz, da Companhia da Olga Roriz e esse foi um caso dos… que até conseguimos repor algumas coisas e que eu recebi os dinheiros todos, mas na música principalmente foi… eu até digo, foi criminoso! Porque com uma lei que é tão direta e é tão explicita e que eu não sendo “legista” consigo ler e consigo interpretar e perceber, não percebo como é que é possível as câmaras não assumirem as suas responsabilidades e não pagarem aos técnicos, aos músicos? Há uma outra coisa que me preocupa imenso que é… porque lido com estas pessoas, são pessoas que me são muito próximas que… se alguns artistas e músicos ainda receberam o dinheiro de algumas compensações destas, se alguns técnicos ainda receberam o dinheiro, as empresas que fornecem os equipamentos, muitas vezes as adjudicações dos trabalhos são muito perto do evento, tu contratas o artista e se calhar com seis meses de antecedência, mas a empresa que vão fornecer o equipamento, por vezes são adjudicações muito mais perto e então…

Francesco: …elas não tinham contrato…

Sérgio Milhano: …estas empresas não tinham contratos feitos, ainda não se sabia quem iria fazer, portanto… este dinheiro estava destinado para esta parte, não é? Do orçamento que é o aluguer do equipamento… e pronto! Estou muito próximo a muitas pessoas dessas, que estão com as empresas com armazéns gigantes, com investimentos brutais, com leasings gigantes de equipamento, que contavam com as festas de verão, com os festivais e que receberam zero… pronto! E como muitos tem moratórias nos bancos, mas que as moratórias vão acabar, não é? E o equipamento continua lá e não foi… portanto…

Francesco: …um panorama bastante…

Sérgio Milhano: …sim! E nós não sabemos quando é que vai voltar… esta… eu percebo tudo, não é? É fácil perceber o que está a acontecer e é fácil perceber que não se consegue fazer previsões, não é? Sei lá, ainda hoje parece que vai haver esta comunicação, mas estamos sempre a falar em 15 dias, porque… ou seja: vamos abrir os teatros segunda feira! Mas a garantia que temos é que os teatros se abrirem segunda feira, vão estar abertos durante 15 dias, de aqui a 15 dias vamos decidir se continuam abertos ou se voltam a fechar… e é muito difícil programar e fazer uma programação, sei lá… de itinerância, de tournée, não é? Como é que se programa uma tournée, mesmo dentro de Portugal, já nem falo no internacional, como é que se programa uma tournée com esta indecisão? Vamos arrancar agora e de aqui a oito dias paramos? E depois quando é que retomamos outra vez? Temos que fazer ensaios novamente com os músicos, portanto há todo um investimento, há toda uma… há todo um mecanismo de como estas coisas funcionam que me parece a mim que… ou as pessoas decidem… não conhecem este mecanismo ou então não querem saber e pronto! Ambas são preocupantes, mas… e depois, penso mesmo que devia haver uma política mais inteligente de… ou mais dedicada, portanto… é isto! Era preciso maior conhecimento do que é a nossa área…

Francesco: …e toda a logística que é envolvida…

Sérgio Milhano: …certo! Para poder tomar decisões adaptadas a esta realidade, uma realidade… eu percebo que é muito difícil, mas os apoios tem que ser conduzidos para a realidade de cada área: a hotelaria terá as suas, sei lá… a medicina terá… a saúde terá as suas, a ciência terá as suas, o desporto terá as suas! Eu falo daquilo que eu conheço e que é o meu meio, de facto, nós na área cultural… existem particularidades desta área que penso que não estão muito protegidas nesta política de apoios gerais e eu falo das pessoas que estão à minha volta e que estão a passar mesmo muitas dificuldades. Felizmente e a propósito da tua pergunta inicial também, desviei-me um bocadinho, houve um impacto… o impacto maior… pronto! O impacto… como é que eu hei de dizer? Logo, logo… aquando do primeiro confinamento, portanto está agora a fazer um ano… não é?

Francesco: Já passou um ano…

Sérgio Milhano: …já passou?

Francesco: Um ano e meio… um ano e três meses…

Sérgio Milhano: …aí em Março do ano passado, aí o impacto foi… pronto! Foi um desligar de tudo, não é? Mas eu pronto, eu não… eu acho que esse primeiro mês, primeiro mês e meio não serve bem de… estava toda a gente perdida! Mas depois a partir de aí, a única coisa que eu sinto que conseguimos recuperar e retomar, ainda que de uma forma débil…

Francesco: …não a pleno ritmo…

Sérgio Milhano: …mas que conseguimos retomar, conseguimos trabalhar e tem sido um bocadinho à base do sustento da Ponto Zurca, é! Foi o estúdio! Portanto… e a loja de discos, que também dentro do que é o modelo do comércio de pequena escala, porque é uma loja pequena, onde só podem estar duas pessoas na loja, porque é uma loja pequena… mas foi abrindo e voltou a uma certa normalidade. O estúdio demorou mais tempo mas em Junho, Julho, conseguimos voltar a uma normalidade no estúdio felizmente… porque temos… trabalhamos com muitas pessoas, temos… felizmente temos uma procura grande também de trabalho e embora não estamos em overbooking e não estamos a trabalhar, mas conseguimos retomar… pronto! Conseguimos manter as coisas e ter uma… e garantir alguma sustentabilidade. Agora, tudo o que é espetáculos ao vivo… que era uma área bastante forte, se vamos a falar do impacte financeiro… porque o estúdio, como é que eu hei de dizer, o estúdio se bem que pode ter até algum income, não é? Obviamente que tem o income da diária que os artistas pagam para estar no estúdio, o estúdio tem… é muito pesado logisticamente… de manter: compramos os equipamentos, a manutenção dos equipamentos, pronto! Portanto é uma maquina, pronto! Complicada de sustentar… e o estúdio já tem uma certa dimensão e obriga mesmo a que haja este trabalho regular… felizmente este trabalho a partir de Julho, principalmente até agora… tem se mantido, sendo que este último confinamento, eu senti uma quebra maior…

Francesco: …em relação ao primeiro?

Sérgio Milhano: Em relação ao primeiro, porque sinto que mesmo os artistas maiores com quem trabalho que no primeiro confinamento, até podemos dizer que aproveitaram para gravar, porque vinham com um income de concertos regular e disseram, olha: se calhar agora é uma boa altura para se gravar e para se parar, porque também pensavam que esta paragem ia ser… aquele que todos pensávamos, não é? No início, ah! Isto de aqui… eu lembro-me que no primeiro… quando paramos, dizia-se que logo nesse verão já ia estar toda a gente vacinada e que já vinha a vacina, não é? E que aquilo era uma coisa de dois ou três meses e voltávamos à normalidade… aliás ainda se discutia se ia haver festivais de verão neste ano [2020]… e depois quando se percebeu que isto afinal não era assim, não é? Agora já se discute: será que vai haver festivais… este ano [2021], portanto um ano e meio depois… portanto! E agora mesmo estes artistas maiores, eu já sinto que mesmo estes já estão com algum, não vou dizer… não sei se são dificuldades financeiras, mas que já olham de outra maneira para os investimentos e também porque existe aquele receio, isto mais na música… de lançar um disco agora e não o poder apresentar ao vivo, portanto…

Francesco: …e não ter aquele retorno de datas, de tournées…

Sérgio Milhano: …de não ter retorno! As coisas hoje são muito rápidas, tu não consegues ter um disco e estar um ano e meio depois… com… este disco! Já não é novo para o público, ou pelo menos para quem manda na cena musical e por isso, há aquela coisa dos tempos modernos de seis em seis meses tens de sair com um single novo, isto falando daquela área mais pop, não é? Mais comercial! Então, com isto parado os artistas também recuaram um pouco e dizem, epá… se calhar, vou gravar agora, mas para que? Para lançar de aqui a um ano? Então, parece que também estão a atrasar um bocadinho este processo. O último disco que eu gravei antes do confinamento, portanto… estamos a falar de um disco que foi gravado em Novembro/Dezembro de 2019, saiu este mês! Foi o disco da Gisela João

Francesco: ah! Da Gisela, passou um ano e quase e meio…

Sérgio Milhano: …o disco foi gravado mesmo no limite do confinamento, acabou de ser misturado ali no inicio do confinamento, mas depois só sai agora! Portanto isto é um caso… pronto! O disco da Gisela é um caso de… por exemplo, de um disco que ficou… penso eu, eu não estou dentro do processo, não é? Mas este tempo penso que se deve precisamente a essa… uma certa, mesmo os mais profissionais managers da nossa… do mundo… toda a gente foi apanhada de surpresa e há uma nova maneira de, como é que eu hei de dizer… de lidar com isso!

Francesco: Perspetivar?

Sérgio Milhano: Perspetivar… de… como é que agimos agora? Não é? Aquilo que falávamos um bocadinho antes de começar esta entrevista, que é isto agora do streaming, não é? Isto de repente passou para à frente de tudo, parece que é a coisa mais importante do mundo e dantes era apenas usado por alguns, não é? E de repente passou a ser a ferramenta principal da divulgação de tudo, da música, do teatro, da dança…

Francesco: …até de orquestra sinfónica…

Sérgio Milhano: …até de orquestra! Peças a serem tocadas com as pessoas em confinamento em casa, não é? Descobriu-se um novo… há uma nova cena, há um novo mundo digital, chamemos lhe assim, que… pronto! Que eu acho que serve para… como é que eu hei de dizer? Serve para dar respostas a estes tempos, mas que sem duvida vai deixar marcas para…

Francesco: …no mercado?

Sérgio Milhano: No mercado e na maneira de como as pessoas ouvem música, veem espetáculos… neste momento, aqui a minha pergunta, a minha duvida… e porque estou… faço também parte da produção de um ciclo de música e por exemplo, neste caso o ciclo de música que nós produzimos, que se chama…

Francesco: …que se chama?

Sérgio Milhano:  O “Há Música na Casa da Cerca” que vamos este ano 2021 fazer a 7ª edição, portanto começamos há sete anos atrás. O ano passado tínhamos, portanto 2020, tínhamos acabado de fechar a programação, porque isto é feito em parceria com a Casa da Cerca, que é um Centro  de Arte Contemporânea em Almada e com a Câmara de Almada e tínhamos acabado de fechar a programação no final de Fevereiro…

Francesco: …um pouco antes…

Sérgio Milhano: …um pouco antes, tínhamos as datas, porque é sempre no último sábado de cada mês, nos meses de Maio a Setembro e há dois concertos nas exposições que são feitos antes, em Março e Abril. E tínhamos acabado de fechar esta programação precisamente no final de Fevereiro, não me lembro do dia, mas lembro que foi antes do final de Fevereiro e no dia… o primeiro concerto seria… não em Março deste ano, mas sim em Abril, seriam dois em Abril e estávamos ali a ver as melhores datas para fechar definitivamente as datas de Março, quando no dia 12 se percebe que isto muda tudo, não é? E pronto! E na altura a primeira… os primeiros pensamentos… foi… ok! Vamos ter que cancelar… internamente aqui na Ponto Zurca fizemos um exercício de perceber como é que podíamos não deixar cair o projeto, porque eu achava que parar um ano era  parar! Interromper um habito que já havia no público e é muito difícil criar estes hábitos no público, porque isto é uma programação que traz à cidade um outro tipo de artistas, uma coisa se calhar menos mediática, menos mainstream, mas que eu penso ser de grande qualidade e que traz um novo conteúdo para um novo público! É a minha ideia: é a ideia que nós temos deste ciclo é levar pessoas que não estão habit… que se calhar não tem ainda aquele chamamento de comprar um bilhete para ir ao teatro ver um concerto, através de uma programação gratuita num sitio lindíssimo, com um jardim, vão ter vontade de ir ver e criar este habito nas pessoas e ir educando o público. E ao mesmo tempo também, trazer um público diferente do próprio público da banda que é aquele que já é público do artista e que comprou o bilhete, portanto é aqui… pronto! Um bocadinho tentar puxar a coisa, mas… mas isto para dizer que ficamos… pronto! Parar seria terrível e depois surgiu uma ideia que não é de todo original… e que é de toda a gente, que foi: ok! Se não podemos ter público, então vamos fazer streaming! Nos abdicamos do live streaming, porque eu tecnicamente… eu estou muito ligado à parte técnica destas coisas, acho sempre que o live streaming para ser feito na qualidade que eu gosto de ter nas coisas que produzo, obrigaria a um investimento financeiro que não era suportável, então… e uma vez que temos todos estes recursos do estúdio, o que eu pensei foi: para quem vê em casa, estar a ver direto, ou estar a ver em diferido, não creio que tenha… que faça uma grande diferença, também porque havia esta incerteza de quando é que se podia

sair, quando é que não se podia sair, quando é que estava mesmo fechado, quando é que não podíamos ter público, mas podíamos estar 10 pessoas a filmar, então o que nós fizemos foi: assim que tivemos a oportunidade de uma pequena abertura, na vida normal entre aspas, nesta nova vida normal, decidimos filmar tudo de seguida, pós produzir…

Francesco: …todos os concertos?

Sérgio Milhano: Todos os concertos, pós produzir… e os concertos saiam na data anunciada inicialmente na programação…

Francesco: …sem ser exatamente em streaming

Sérgio Milhano: ….sem ser o streaming direto… isto permitia-nos melhorar a cor do vídeo, melhorar a edição, misturar em estúdio, corrigir algumas coisas, pronto e elevarmos se calhar um bocadinho, penso eu, a fasquia do produto e com isto conseguimos também fazer as transmissões com media partners! Tivemos o ano passado a RTP África, o Público, o Jornal do Público e a Antena 2, porque tentamos direcionar o tipo de artista, tentamos encaixar numa plataforma que nós parecia mais adequada a este artista, pronto! E fizemos três com o Público, dois com… não, três com o Público, um com a Antena 2 e um com a RTP África. Este ano já fizemos um também, ainda sem público, um bocadinho no formato do ano passado, porque foi agora em Março, foi o lançamento da programação…

Francesco: …mas o processo foi igual, gravar lá e depois pós produzir?

Sérgio Milhano: Certo! Este processo foi igual, no entanto vamos… o próximo é agora… este foi com o Bernardo Couto e com o Martin Sued e o próximo vai ser com o Mestre Galissa da kora. Em Maio nos queremos… acreditamos que já vamos ter público e ai vamos filmar com público e será transmitido no media partner uma semana depois. Portanto a data da apresentação live com público é uma e a data de transmissão é outra! Porque o que aprendemos do ano passado foi que não queremos de todo e acho mesmo que isso é um fantasma que está na cabeça de algumas pessoas e que não faz sentido, que é: o live streaming não vem substituir a vontade das pessoas a ir a uns concertos, quem tem vontade de ir ver um concerto… até porque é completamente diferente a experiência de ver um concerto ao vivo e presencial, de o ver através de uma câmara ou de um ecrã de um telemóvel ou de um computador, ou até na televisão, para quem tem os dispositivos, que pode ter para estar a ver o youtube e o facebook na televisão. Eu acho que, eu agora… ao mesmo tempo penso que… se calhar eu próprio tenho de admitir que percebi a grande ferramenta que é o streaming porque de repente não tenho medo de ter menos pessoas no concerto, porque estou a transmitir, mas sei que não posso ter, por exemplo… como depois… ainda por cima a internet dá-nos isso, não é? Nós conseguimos ver quem é que teve a ver o vídeo, não a pessoa em concreto mas conseguimos dizer que… por exemplo, eu consigo saber que tiveram duas pessoas no Japão, por exemplo, a ver o concerto e tiveram 30 ou 40, no caso do Nilson [Dourado] ou mais… já não lembro, em Maio a ver do Brasil, porque ele é um artista brasileiro e essas pessoas nunca viriam a ver o concerto em Almada, estando no Brasil! E é ali que nós pusemos, através do streaming, conseguimos aproximar as pessoas, conseguimos levar esse público…

Francesco: …este público global…

Sérgio Milhano: …há pouco tempo, fiz um streaming com a Olga Roriz e falava-se… era um streaming pago, onde as pessoas pagavam o bilhete, era… e era engraçado porque conseguimos perceber que estavam a comprar os bilhetes de vários países espalhados pelo mundo fora e sei que a produção teve vários contactos, por exemplo, de produtores de festivais que estavam a comprar os bilhetes para ver a estreia da peça. Portanto, isto deixa-me pensar, por exemplo eu lembro-me que fui à Coreia do Sul com a Olga e por exemplo, se calhar o produtor de um festival de dança na Coreia do Sul pode estar a ver a peça no dia em que ela estreia, ou no dia a seguir, ou na semana a seguir, não tendo que fazer uma viagem à Europa para ver este espetáculo. Portanto, ele pode estar a ver essa peça e pode pensar em programá-la para o seu festival, portanto o streaming permite-nos de repente…

Francesco: …mas pode também ser, pelo contrário, que eles no lugar de contratar-te e comprar-te 15 bilhetes de avião para a Coreia, vão dizer, ok! Façam isto em streaming num teatro de Lisboa e transmitimos para o público da Coreia… que isto venha reduzir estas possibilidades de tournée, etc.?

Sérgio Milhano: Eu penso que… eu percebo a tua pergunta, pensei muito durante estes tempos nesta questão e isso é precisamente é apenas a minha opinião, mas a minha opinião é que esse é o fantasma que eu acho que não devemos ter, não podemos ter este medo! Porque? E agora, não quero parecer muito drástico na minha opinião, mas eu penso mesmo que o público, isto é um bocado parvo se calhar o que vou dizer, mas… às vezes apetece-me dizer que o público que fica satisfeito a ver um espetáculo de dança ou um concerto no telemóvel, não merece… não é este público que eu preciso ter nos meus concertos, porque eu acredito mesmo que é tão diferente a experiência, eu acho que uma coisa não vem substituir a outra…

Francesco: …sim, sim!

Sérgio Milhano: Eu acho que nem sequer é comparável, aqui há uns tempos tive uma conversa com um amigo, que se falava do caso por exemplo do futebol, não é? Com as mega transmissões que há na televisão e que se calhar muita gente diz, epá! Não, eu para ir para o estádio e não sei o que… com os 20 euros tenho o canal pago na televisão e vejo aqui ou até vou ao café e estou com os amigos e não sei o que… e eu acho que o futebol é um bocadinho diferente, porque é um jogo que na realidade o que interessa é o resultado, até podemos discutir, até se calhar vês melhor ali do que… vês melhor na televisão do que vês ao vivo…

Francesco: …mas não será nunca a mesma emoção que estar ali no estádio…

Sérgio Milhano: …mas nunca é a mesma emoção que estar ai no estádio! E as pessoas que realmente gostam de futebol, não trocam um café cheio com um ecrã gigante, ou o conforto do sofá de casa, por irem ao estádio ver o jogo! Por isto é que os jogos cada vez tem produções… investimentos de produção televisiva maiores e os estádios continuam cheios, porque as pessoas não deixam de ir aos estádios para ver! Agora… lá está! O que permite a transmissão televisiva é que se calhar o jogo esteja a ser visto no mundo inteiro e em vez de ter 60mil pessoas no estádio, tem 60mil milhões de pessoas espalhadas pelo mundo a ver o jogo. Portanto eu acho que a transmissão, não vai… não tem necessariamente que roubar as pessoas que tem a experiência no sitio, não vai tirar-te a possibilidade de tournée, mas eu penso mesmo que vai potenciar! Por isto também é que eu digo que quis fazer pós produção, porque acho que devemos ter muito cuidado com os conteúdos que colocamos, para mostrar o produto…

Francesco: …na sua melhor… potencialidade…

Sérgio Milhano: …na sua melhor… isso! Porque esse foi um dos problemas que eu senti na maneira de como foi abordada a questão do streaming: streamings com o telemóvel, ou com qualidade… eu acho que isto sim afasta o público! A pessoa diz: ah! mas a música do Manuel Maria é isto? Ah, então não quero ir ver!

Francesco: Exato!

Sérgio Milhano: Mas se, epá! Manuel Maria nunca ouvi falar e lhe chegar um vídeo… uau! A pessoa diz, epá! Quando este Manuel Maria passar aqui no teatro da minha cidade, eu quero ir ver! Que isto é bom! isto chamou-me a atenção! Portanto, eu acho que é assim que temos que olhar para isso! Por exemplo, outra coisa que eu não sei se fiz bem ou se fiz mal, eu acho que fiz bem se não, não tinha feito, mas por exemplo, nós… os concertos tem uma duração de uma hora normalmente… quando houve esta adaptação para streaming, nós cortamos a duração dos concertos para 30 minutos, porque eu penso que enquanto uma hora é extremamente prazeroso estar num jardim a ver um concerto, eu não acredito que seja muito prazeroso estar mais do que 20 minutos, 30… a olhar para um telemóvel… dentro do que é a tua vida caseira. Portanto, eu acho que também é preciso adequar os conteúdos, porque se ninguém vai ver o concerto todo e eu quero pensar no concerto como um todo! É como ver um filme, eu quero ver um filme do principio ao fim, não vou ver só a parte da ação, onde acontece a parte principal, não! Eu quero ler a história toda, eu não leio só 10 páginas do livro e digo que eu li o livro! Portanto eu, se quero ver o concerto… eu tenho que ver o concerto! Então nós alteramos o tempo do concerto para 30 minutos e este ano vamos fazer o mesmo: o concerto presencial tem uma hora, mas o transmitido só tem 30 minutos, não é porque queremos poupar na fita ou, não! É porque achamos mesmo que são produtos diferentes que devem ser trabalhados de forma diferente. Porque um não procura ser substituto do outro, são ferramentas diferentes… o conteúdo é o mesmo, não é? O conteúdo base é o mesmo, mas o produto é diferente, pronto! O som que se deve fazer para o streaming, não é necessariamente o som que se tem de fazer no live, tem que ser… é isto que eu acho que… é isto que me afastou dos live streamings… que é esta capacidade de… eu posso estar a fazer um grande som de streaming e o som no dia está muito mal, porque eu estou com uns auscultadores demasiado preocupado, como é que aquilo vai chegar à casa das pessoas… e viceversa: pode estar um grande som nos espaços, mas que não é adequado à transmissão, isto obrigaria a ter dois técnicos separados, a fazer uma e outra coisa, para garantir aquela qualidade que se pretende, ou então fazer em pós produção e não fazer em tempo real…

Francesco: …exato!

Sérgio Milhano: Pronto! É um bocadinho por ai, pronto! E agora estamos todos na espectativa que isto retome, não é? O mais cedo possível!

Francesco: Muito obrigado Sérgio, o teu contributo é ótimo até para todos os músicos que fizeram streaming e todos os músicos que entrevistei até agora, que… como tu disseste… têm uma ideia um pouco assim… do streaming, como se fosse um formato de performance que vem substituir a música ao vivo e ouvindo as tuas palavras realmente, poderá ser de ajuda para todos, para entender este novo formato como uma ferramenta para o futuro, até pelas estratégias futuras de marketing e de difusão de produtos novos…

Sérgio Milhano: …sim! E penso também que cabe a nós não deixarmos de, como é que eu hei de dizer… acho que parte do próprio músico e dos próprios técnicos e até do próprio público, fugir desta ideia de que uma coisa vem substituir a outra, até porque um dos… a rentabilização e eu percebo que é isto que assusta toda a gente, a rentabilidade ou a rentabilização, não sei qual é o nome técnico para isto, mas como é que nós conseguimos recuperar financeiramente o fruto do nosso trabalho através do streaming? É muito complicado e é isso também uma das grandes preocupações, não é? Porque… quer dizer, são os concertos de certa forma que te dão a sustentabilidade financeira e o streaming veio complicar bastante isso! Porque é muito difícil perceber ou há vários estudos destes exemplos, não é? De trabalhos que são streaming pago e normalmente as pessoas recuam, mas as pessoas… e isto para mim é a primeira prova que as pessoas não estão na disponibilidade ou na disposição de pagar para ver um streaming, mas estão para pagar para ver um concerto!

Francesco: Exato, sim!

Sérgio Milhano: Portanto, o próprio consumidor, agora esquecendo o lado de quem produz… o próprio consumidor já dá valores diferentes a uma coisa… ainda da valores bastantes diferentes a uma coisa e a outra! E isso pra mim é a prova que mesmo na cabeça das pessoas existe esta separação. Neste momento, não havendo uma… a outra pode ser pelo menos… manter-nos vivos de certa maneira e educar o público também, se calhar através de crowd fundings e de aquelas coisas que as pessoas participam com o que querem, não é? E há casos até espetaculares de pessoas que conseguiram angariar bastante dinheiro com os seus concertos online. Acho é que quanto maior for a qualidade deste produto, também mais podes exigir ou mais podes esperar, que as pessoas estejam na disponibilidade de te oferecer, acho que sim!

Francesco: Ok! Sérgio muito obrigado por este contributo, foi um grande prazer falar contigo e foi de aprendizagem para mim também, para ver as coisas com uma perspetiva diferente…

Sérgio Milhano: …sim! É um pouco da minha maneira de ver tudo isto, não é? Não sei se é certa, sinceramente!

Francesco: Ok! Obrigado, Sérgio!

Sérgio Milhano: Nada!Um abraço!

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