08.12.2022
Perder é a Glória dos Bravos
“Eu sinto uma disposição/ Eu sinto uma inclinação/ Para falar, ouvir falar/Daquilo que amo”.
“Prece 909”, Os Perdedores
O disco mais pessoal de Manuel Fúria – ele que só sabe edificar uma arte assente na biografia. O passado quer-se arrumado em cima da cama como o vestuário que já não serve. Fúria decide catalogar a memória e arriscar a reinvenção. Ao banho de uma nostálgica melancolia, como aconteceu em périplos anteriores, prefere tentar uma catarse antes da luz.
Para isso, assume a dor da perda e a religião. Lembra mártires, denuncia massacres, nomeia a brevidade de tudo, homenageia um chão. Coloca na montra das lojas que já morreram destroços, raízes, o rosto de pessoas que foram decisivas, paisagens que determinam vidas.
“Os Perdedores” é o disco de uma banda de quem já teve uma banda. É nessa contradição que se cumpre e se transcende.
Reúne um punhado de canções de um rockeiro que adere à electrónica para dizer o tempo das guitarras. Uma electrónica sem heroísmos, que, ela própria, homenageia um cânone. Quase como um paradoxo, o sentido é o de densificar e convocar sombras. Para depois voltar a uma possibilidade, assente na glória de perder.
Músicas de quem já foi “o maior” e quer purgar a soberba e outros deslumbres. Canções de quem aceitou a escultura do tempo e procura formas de salvação possível ao gritar o nome dos amigos naufragados ou ao lembrar a infância, dividida entre a cidade e as serras, de “um menino de seu pai”.
“Os Perdedores” é o melhor título para um álbum musical-conceptual concretizado num tempo em que o triunfo mentiroso é o fetiche dominante. A autoria é apagada para dar lugar ao escândalo do anonimato.
Bravo gesto de quem se despede, acerta contas, paga dívidas, acorda noutra manhã. Que é como quem diz: de quem alinha os escombros e abre, com o destemor da fragilidade, as portadas do futuro.
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